"Nós não somos seres humanos tendo uma experiência espiritual. Somos seres espirituais tendo uma experiência humana"

(Teillard de Chardin)

27 janeiro 2013

O país dos dedos gordos



Vivia, num país distante e de céu cor de anil, um povo pobre e feliz, que na sua pobreza tinha tempo e gosto para cantar, brincar, fazer versos, e experimentar com aquelas artes e aquelas ciências que faziam alegres o seu coração.

Felizes também eram o rei e a rainha, amigos de todos e que esperavam, para sua felicidade, o nascimento de uma criança. 

Nasceu uma menina linda, mansa e fofa. 

E para que nada lhe acontecesse, convidaram como madrinhas e padrinhos do batizado todas as fadas e magos do reino, que com os seus encantamentos haveriam de envolver a criança com um círculo mágico protetor. 

Ignoravam, é claro, a bruxa malvada que vivia na floresta negra.

Quando ela soube, pela leitura das colunas sociais, que havia sido desprezada, teve um acesso de cólera e jurou vingança. 

Mandou ao palácio seus corvos espiões: que verificassem se havia algum ponto vulnerável nos encantamentos que protegiam a princesinha.

Voltaram desapontados: "o corpo da princesa está fechado. Nada sério pode ser feito. Só existe um lugarzinho. Esqueceram-se do dedo 'seu vizinho', da mão esquerda...'' 

A bruxa deu uma gargalhada: "Mais que suficiente. Jogarei uma praga que fará com que o rei e a rainha se arrependam para o resto de suas vidas. Aquele dedinho vai engrossar, engrossar, engrossar. E não haverá remédio que cure..."

E assim foi. E a malvada ainda mandou dizer, por mensagem no bico de seus corvos-correio.

O rei e a rainha foram tomados de grande aflição.  Chamaram fadas e magos. Inutilmente. Bruxedo não se desfaz. Vieram médicos, cirurgiões plásticos, invocaram homeopatia, fizeram compressas de confrei, apelaram para o poder das pirâmides e a meditação transcendental.

Em vão. 

Pobre princesinha. Seu dedinho virou dedão, grotesco e vermelhão. 

Não podia usar aquelas lindas luvas brancas. E nem os anéis reais. 

Também não podia tocar piano, violino ou violão. O dedão esbarrava e a nota desafinava. Chocava a pobre princesinha, inconsolável pelo seu "seu vizinho"... Quem queria se casar com uma jovem de dedo grosso?

O rei, desesperado, chamou seus sábios e pediu conselho. 

Foi então que um deles fez sensata ponderação! "Alteza, se não é possível fazer com que o dedo da princesinha fique igual aos dedos dos outros, é possível fazer os dedos dos outros ficarem iguais ao dedo da princesinha. Ao final, o resultado será o mesmo. Ninguém terá vergonha".

O rei ficou encantado. E logo chamou os técnicos que foram encarregados de viabilizar a solução. 

O que se decidiu foi o seguinte: o rei promoverá, anualmente, um baile para qual todos os jovens do reino estão convidados. Infelizmente, nem todos poderão ser admitidos porque só há lugar para mil pares no salão de festas.

Muitos serão chamados, poucos os escolhidos. Mas estes serão regiamente recompensados: empregos públicos vitalícios.

E um, dentre estes, será escolhido pela princesa, como marido, futuro rei. 

O critério de admissão? Os mil que, dentre todos, tiverem os dedos mais grossos "seu vizinho" da mão esquerda. 

Pra que haja justiça, sem fraude, se colocarão orifícios eletrônicos no vestíbulo do palácio. Os moços enfiarão seus dedos, o computador dirá quantos pontos fizeram, se passaram ou não.

E assim se fez.

Os arautos anunciavam a boa-nova. De repente o reino mudou. Todos compreenderam que o futuro passava pelos exames vestibulares e só havia uma única coisa que importava: a grossura do "seu vizinho" da mão esquerda.

Cessou a antiga alegria inconseqüente e descontraída. Os pais deixaram de prestar atenção nos risos para prestar atenção no dedo. E se gabavam: "menino de futuro promissor; veja só seu dedo, tão jovem, tão gordo..."

As escolas passaram por revoluções. 

Os estabelecimentos antiquados, preocupados com sorrisos, viram-se repentinamente sem alunos. "Alegria não engrossa dedo", diziam os pais, categóricos, ao pagar sua última prestação. 

E as que progrediam eram aquelas que desde cedo introduziam as crianças na filosofia do dedo grosso. 

Música, literatura, brinquedos, as artes e as ciências a que davam prazer foram todas aposentadas. 

O que importava era passar no vestibular e, no vestibular, só contava a grossura do dedo.

E foi assim que se criou uma nova filosofia da educação, e coisas novas, cursinhos que viam tudo pelo ângulo e segundo o objetivo de engrossar os dedos.

Os preços eram exorbitantes. Os pais trabalhavam horas extras, as viúvas lavavam mais roupas: "Pai não mede sacrifício para o bem do seu filho..." 

E à noite rezavam: "Oh, Deus, ajuda o meu filho para que ele ten disciplina e se aplique para que o seu dedo engrosse..."

Mas, ano vai, ano vem, a mesma coisa acontecia. Só mil entravam.

Os que ficavam de fora se punham a olhar para seus dedos grossos, aquele era o resultado de anos de disciplina e privações. Será que adiantou? E pensavam nas coisas perdidas, nunca mais. Dedo grosso, inútil, gordo de abstenções e sacrifícios. As coisas que davam prazer haviam sido abandonadas e, agora, estavam sem o baile e sem o prazer. A suspeita era de que haviam sido vítimas de uma grande burla ...

A cada ano que passava, aumentava o número de jovens tristes.

Nunca entrariam no baile. E o pior: estavam aleijados. 

O mundo se havia transformado num gigantesco dedo grosso. 

Era como se um pedaço da vida lhes tivesse sido roubado, irremediavelmente. O passado não se recupera. 

Por todo o País, a nuvem de tristeza. Os técnicos sugeriam que, talvez, com técnicas mais eficientes, a qualidade do ensino pudesse ser melhorada. Dedos mais grossos, talvez ...

O único problema é que o tamanho do salão de bailes continuava o mesmo. 

Lá dentro a situação não era melhor. A princesinha não se decidia sobre o seu eleito: “Pai, eles são tão chatos. Só sabem falar sobre dedos grossos. Preferiria um moço de dedo fino, mas que fosse alegre e pudesse me alegrar...”

O rei compreendeu, repentinamente, o tamanho de sua estupidez.

Às vezes, o amor é cego e burro.

Mandou seus arautos de novo, país afora, dizendo que dali para frente ninguém mais seria julgado pela grossura do dedo. O que importaria seria a alegria de viver.

E então, como que por encanto, o País acordou do seu feitiço.

Ninguém mais procurava os cursinhos engrossa-dedo, que tiveram de fechar suas portas.

Os pais mudaram suas orações, pediam a Deus que fizessem alegres os seus filhos, pararam de fiscalizar os seus dedos "seu-vizinho", e iam às escolas para saber das coisas belas e gostosas que ali se faziam.

Os poemas voltaram a ser lidos, os moços brincavam com suas flautas e violões sem dores de consciência, e das Ciências e Artes eles se dedicavam àquelas que lhes davam prazer.

O salão de festas continuou do mesmo tamanho. Mas sua sombra sinistra já não mais enfeitiçava os anos da juventude.

Mesmo os que ficavam de fora continuavam a sorrir, porque sabiam que tinha valido a pena. O mundo ficara mais belo. O tempo não tinha sido perdido. O passado não tinha sido inútil.

E o rei, olhando para a princesinha, feliz, cantarolava que o que importa é que cada um "da alegria seja um aprendiz".

E os moços tomavam seus instrumentos e dedilhavam as cordas. E não havia dedos gordos que atrapalhassem.

(Rubem Alves)

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