14 agosto 2010
A vida se faz nas marcas
[...]Vivemos numa época que não quer ser marcada.
A maioria de nós tenta escapar das rugas, estas cicatrizes do rosto, de todas as formas - algumas delas bem violentas.
Os sinais da idade, da vida vivida, são interpretados como algo alienígena, estranho a nós. Estão ali, mas não deveriam estar. É quase uma traição. Urge então apagá-las.
É tamanho o nosso medo da velhice e da morte, que as marcas da vida vivida são decodificadas como feias, quase repugnantes. Tanto que estamos diante de uma novidade - as primeiras gerações de seres humanos envelhecendo e morrendo com os sinais não da idade, mas das cirurgias plásticas. Sim, porque estas também são cicatrizes.
Não há jeito de morrer sem marcas porque não há como viver sem ser marcado pela vida.
Mesmo os bebês, que por alguma razão morrem ao nascer, já trazem no corpo a marca fundadora - o corte do cordão umbilical que lhes arrancou de dentro da mãe. O umbigo é nossa primeira cicatriz, aquela que nos unifica.
Se a tecnologia conseguir inventar um ser humano sem marcas é porque desinventou o ser humano.
Podemos talvez um dia apagar todas as marcas visíveis, tatuadas no corpo. Mas nunca haverá uma cirurgia capaz de eliminar as marcas da alma.
E esta é também uma tentativa que temos empreendido com muito empenho. Por um excesso de psicologês, uma leitura transtornada do pensamento de Freud, passamos a achar que tudo é terrivelmente traumático.
Qualquer contrariedade ou vivência não programada supostamente estigmatizaria nossos filhos e aniquilaria seu futuro. Qualquer derrapada no script de nossos dias nos assinala como catástrofe. Parece que viver se tornou uma experiência por demais traumática para quase todos - e, se assim é, a única solução seria não viver. Mas a questão não é o trauma - e sim o que cada um faz com ele.[...]
(Eliane Brum)
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