O tempo avança. Sinais diferentes. A gravidez se estabelece. No claustro materno, o ser se regozija, está seguro e protegido.
Mas eis que vem a ordem — "É necessário expulsá-lo". Não tem a quem recorrer, não sabe o que pensar, nem podia acreditar. Sua voz não é ouvida, sua presença é negada. Corações endurecidos têm ouvidos cerrados.
As mães dão a vida por seus filhos, como chamar a quem deseja matá-lo? Ao coração empedrado do pai, nem em sonhos podia falar: preso estava às contas e prazeres.
A escolha fora uma opção de amor. No tempo, era preciso apagar as mágoas do passado, eliminar tristezas, linchar o ódio, fazer crescer a união embalada na esperança.
Existiam milhões de ventres no mundo, reservatórios de vida e de luz, aquele fora o eleito sem o aleatório lotérico nem a casualidade da ocasião.
Agora era o dilema. E pensava: "Por que Jesus nascera e Maria não o abortara? Que teria sido do mundo se ela o rejeitasse?" Podia escutar o pensamento da mãe por dentro de si mesmo: "Ele não era Jesus..." E tinha em parte razão.
Mas para que mãe seu filho não é um menino Jesus, carregado dia e noite, quase de encontro ao peito? Não é, por isso, que as mães adoram seus filhos?
Ouvira uma idéia estranha, alguma coisa tenebrosa: "E se fosse um Hitler, um Mussolini, um Átila..., não seria melhor que tivessem sido abortados? Estes são mais prováveis que Jesus."
Não podia chorar porque ainda não tinha lágrimas; o pequeno corte labial, no entanto, abriu-se como num grito prima: "Milhões destes tiranos não valem um Jesus. Eles foram abortos na evolução. Quem os cria, senão o ódio, o rancor, o egoísmo? Quando se os implanta na cadeia da vida, destruindo fetos, que se pode esperar dos que renascem? Teria sido seu corpo concebido num momento de ódio? Não ouvira juras de amor entre a exaltação dos beijos? Como poderiam qualificá-lo agora de o Indesejado, se fora fruto do desejo?"
Enquanto pensava essas coisas, notou que o fio da vida se esvaia, pouca coisa poderia fazer. Agarrar-se ao ventre, colar-se ao corpo da que o expulsava, lutar, lutar, até tirar-lhe a vida e esperá-la do outro lado? Não."
Outra vez, quis chorar, mas não pôde: os que amam não destroem, e ele viera em nome do amor.
Ele a marcaria apenas com o selo da saudade (o que, por engano, chamam de complexo de culpa): pelo resto da vida, pensaria nele, sem saber quem poderia ter sido: “um Beethoven, um Mozart, um Einstein, ou um João Ninguém, dissolvido, na multidão?”
Ah! Seria sempre "seu pequeno Jesus" jogado no lixo.
(Élzio Ferreira de Souza)
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