Como um mestre da
palavra, Rubem Alves relata nesta obra passagens e experiências
vividas, nas quais Deus, a religiosidade, o amor, a beleza e o
sentido da vida estão sempre presentes.
Trata-se de uma
coletânea de crônicas poéticas onde estão reunidos textos que
abarcam, com maestria e conhecimento de causa, os principais
questionamentos existenciais da humanidade.
Anjos, alma, inferno e
céu são debatidos sob um enfoque ousado e surpreendente, que
desmitifica idéias preconcebidas.
Seu texto flui com uma
simplicidade de rara beleza, inspirado por uma memória poética e
reflexões cotidianas.
E o resultado não
poderia ser melhor: Rubem Alves apresenta, nesta publicação, a
espiritualidade sob uma nova ótica, tornando a sua leitura
obrigatória àqueles que buscam ampliar seus horizontes.
Editora Verus.
* * *
Abaixo uma das crônicas deste livro, para nossa reflexão.
Boa leitura!
* * *
Tenho medo de morrer e
ir para o céu.
Eu me sentiria um estranho por lá.
A Cecília Meireles
pensava o mesmo. E se perguntava se, “Depois que se navega, a
algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste.
Nem barca, nem gaivota: somente sobre-humanas companhias...“.
Também eu preciso de
barcas e gaivotas, pois amo o mar e o ar. Sou um ser deste mundo e
sinto que no meu corpo moram rios, árvores, montanhas e nuvens.
Nenhum mundo além
poderá consolar-me da sua perda.
É certo que um
espírito, por bem-aventurado que seja, não pode sentir o cheiro bom
do capim gordura (que recém começa a florescer roxo nos campos).
Para isso ele teria de ter um nariz.
E nem pode sentir o
vento frio das tardes de inverno, a lhe golpear o rosto. Ao que me
parece, espíritos não têm pele. E (pobres) não podem jamais
sentir o prazer de mergulhar no mar. Esta alegria animal está vedada
aos espíritos, seres etéreos que, ao que consta, não sofrem os
efeitos da gravidade (ou da gravidez).
Sua leveza os protege
de quedas de muros, mas lhes tira a alegria do mergulho. Saltam, e
ficam flutuando no espaço.
Amo este mundo. Por
isso não quero ir para o céu.
Nietzsche sentia o
mesmo. E até sonhou com o “retorno eterno“ - voltarei sempre a
este mesmo lugar, o único que conheço, das coisas materiais do
cotidiano, que vão desde o café com leite e pão com manteiga, pela
manhã, até a música de Bach e os céus estrelados, à noite.
Isto, para não se
falar nos prazeres do amor, que não podem subsistir sem o corpo.
Pois precisam do encanto dos olhos que dizem: “Como é bom que você
existe...“. E do olfato, que percebe desde o “brabo cheiro bom de
suor e graxa“, a que Adélia Prado se refere, até o perfume de
pêssego maduro que vem da flor do imperador, tão discreta, e que
Guimarães Rosa declarou ser a mais querida.
E os ouvidos? As
serenatas (antigas), o “eu te amo“ (eterno), os poemas - são
todos seres materiais, que não existem sem a física da fala.
Não posso imaginar um
som espiritual, embora se diga que os querubins tocam harpas e
cantam.
Sons precisam de
bumbos, trombones, violinos, dedos, sopro, corpo: são coisas
físicas, corpóreas. E fico preocupado com o destino de Bach e
Beethoven, espíritos nos céus, para sempre separados dos bons
instrumentos da terra onde tocaram a sua música.
Por isso me alegrei com
esta festa de nome latino, Corpus Christi, em que a cristandade
comemora, teimosa e inconsciente, o corpo de Cristo. Fosse a
celebração da sua alma, confesso que fugiria.
Almas do outro mundo,
boas ou más, são assombrações que causam medo. Sei que há um dia
que as celebra, o dia de “todas as almas“, também chamado de dia
de todos os santos, logo antes de finados. O que combina muito bem. A
alma começa quando o corpo termina.
Parece que acreditavam
que as almas vagavam, penadas, por este mundo (dia das bruxas!),
sofrendo e assombrando os vivos - que, neste dia, faziam orações
por sua eterna salvação nos céus, deixando livre a terra para as
coisas materiais e boas que nela moram.
Mas este dia, Corpus
Christi, a se acreditar na tradição, diz que Deus, cansado de ser
espírito, descobriu que o bom mesmo era ter corpo, e até se
encarnou, segundo o testemunho do apóstolo.
Preferiu nascer como
corpo, a despeito de todos os riscos, inclusive o de morrer. Porque
as alegrias compensavam. E nasceu, declarando que o corpo está
eternamente destinado a uma dignidade divina.
Curioso que os homens
prefiram os céus, quando Deus prefere a terra.
Lembro-me do espanto do
chefe índio que escrevia ao presidente dos Estados Unidos e dizia
não poder compreender as razões que levavam os brancos a desejar,
depois de mortos, ir morar num lugar muito longe da terra.
Nós, ele dizia,
precisamos do perfume dos pinheiros, do barulho da água, dos
riachos, do cintilar da luz sobre a superfície dos lagos.
Corpus Christi: divino
é o pão e toda a terra onde cresceu, com a água que o fez
germinar, e o vento que o acariciou, e o fogo que o cozeu.
Divino é o vinho,
alegria pura que dá asas ao corpo e o faz flutuar. Coisas do corpo:
dentro dele cabe o universo.
Não é à-toa que a
tradição fala não em imortalidade da alma mas em ressurreição do
corpo.
Afirmação de que a
vida é bela e o divino se encontra nas coisas materiais mais
simples.
Como dizia Blake: “Ver
a eternidade num grão de areia“.
Ou Fernando Pessoa:
“Toda matéria é espírito“.
E assim, como e bebo as
coisas deste mundo, corpo de Deus...
(Rubem Alves, in
“Transparências da eternidade”, Verus, 2002)
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário