25 outubro 2012

Dica de livro: "Transparências da Eternidade", de Rubem Alves



Como um mestre da palavra, Rubem Alves relata nesta obra passagens e experiências vividas, nas quais Deus, a religiosidade, o amor, a beleza e o sentido da vida estão sempre presentes.

Trata-se de uma coletânea de crônicas poéticas onde estão reunidos textos que abarcam, com maestria e conhecimento de causa, os principais questionamentos existenciais da humanidade.

Anjos, alma, inferno e céu são debatidos sob um enfoque ousado e surpreendente, que desmitifica idéias preconcebidas.

Seu texto flui com uma simplicidade de rara beleza, inspirado por uma memória poética e reflexões cotidianas.

E o resultado não poderia ser melhor: Rubem Alves apresenta, nesta publicação, a espiritualidade sob uma nova ótica, tornando a sua leitura obrigatória àqueles que buscam ampliar seus horizontes.

Editora Verus.


*  *  *

Abaixo uma das crônicas deste livro, para nossa reflexão.

Boa leitura!


*  *  *



Tenho medo de morrer e ir para o céu. 

Eu me sentiria um estranho por lá.

A Cecília Meireles pensava o mesmo. E se perguntava se, “Depois que se navega, a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barca, nem gaivota: somente sobre-humanas companhias...“.

Também eu preciso de barcas e gaivotas, pois amo o mar e o ar. Sou um ser deste mundo e sinto que no meu corpo moram rios, árvores, montanhas e nuvens.

Nenhum mundo além poderá consolar-me da sua perda.

É certo que um espírito, por bem-aventurado que seja, não pode sentir o cheiro bom do capim gordura (que recém começa a florescer roxo nos campos). Para isso ele teria de ter um nariz.

E nem pode sentir o vento frio das tardes de inverno, a lhe golpear o rosto. Ao que me parece, espíritos não têm pele. E (pobres) não podem jamais sentir o prazer de mergulhar no mar. Esta alegria animal está vedada aos espíritos, seres etéreos que, ao que consta, não sofrem os efeitos da gravidade (ou da gravidez).

Sua leveza os protege de quedas de muros, mas lhes tira a alegria do mergulho. Saltam, e ficam flutuando no espaço.

Amo este mundo. Por isso não quero ir para o céu.

Nietzsche sentia o mesmo. E até sonhou com o “retorno eterno“ - voltarei sempre a este mesmo lugar, o único que conheço, das coisas materiais do cotidiano, que vão desde o café com leite e pão com manteiga, pela manhã, até a música de Bach e os céus estrelados, à noite.

Isto, para não se falar nos prazeres do amor, que não podem subsistir sem o corpo. Pois precisam do encanto dos olhos que dizem: “Como é bom que você existe...“. E do olfato, que percebe desde o “brabo cheiro bom de suor e graxa“, a que Adélia Prado se refere, até o perfume de pêssego maduro que vem da flor do imperador, tão discreta, e que Guimarães Rosa declarou ser a mais querida.

E os ouvidos? As serenatas (antigas), o “eu te amo“ (eterno), os poemas - são todos seres materiais, que não existem sem a física da fala.

Não posso imaginar um som espiritual, embora se diga que os querubins tocam harpas e cantam.

Sons precisam de bumbos, trombones, violinos, dedos, sopro, corpo: são coisas físicas, corpóreas. E fico preocupado com o destino de Bach e Beethoven, espíritos nos céus, para sempre separados dos bons instrumentos da terra onde tocaram a sua música.

Por isso me alegrei com esta festa de nome latino, Corpus Christi, em que a cristandade comemora, teimosa e inconsciente, o corpo de Cristo. Fosse a celebração da sua alma, confesso que fugiria.

Almas do outro mundo, boas ou más, são assombrações que causam medo. Sei que há um dia que as celebra, o dia de “todas as almas“, também chamado de dia de todos os santos, logo antes de finados. O que combina muito bem. A alma começa quando o corpo termina.

Parece que acreditavam que as almas vagavam, penadas, por este mundo (dia das bruxas!), sofrendo e assombrando os vivos - que, neste dia, faziam orações por sua eterna salvação nos céus, deixando livre a terra para as coisas materiais e boas que nela moram.

Mas este dia, Corpus Christi, a se acreditar na tradição, diz que Deus, cansado de ser espírito, descobriu que o bom mesmo era ter corpo, e até se encarnou, segundo o testemunho do apóstolo.

Preferiu nascer como corpo, a despeito de todos os riscos, inclusive o de morrer. Porque as alegrias compensavam. E nasceu, declarando que o corpo está eternamente destinado a uma dignidade divina.

Curioso que os homens prefiram os céus, quando Deus prefere a terra.

Lembro-me do espanto do chefe índio que escrevia ao presidente dos Estados Unidos e dizia não poder compreender as razões que levavam os brancos a desejar, depois de mortos, ir morar num lugar muito longe da terra.

Nós, ele dizia, precisamos do perfume dos pinheiros, do barulho da água, dos riachos, do cintilar da luz sobre a superfície dos lagos.

Corpus Christi: divino é o pão e toda a terra onde cresceu, com a água que o fez germinar, e o vento que o acariciou, e o fogo que o cozeu.

Divino é o vinho, alegria pura que dá asas ao corpo e o faz flutuar. Coisas do corpo: dentro dele cabe o universo.

Não é à-toa que a tradição fala não em imortalidade da alma mas em ressurreição do corpo.

Afirmação de que a vida é bela e o divino se encontra nas coisas materiais mais simples.

Como dizia Blake: “Ver a eternidade num grão de areia“.

Ou Fernando Pessoa: “Toda matéria é espírito“.

E assim, como e bebo as coisas deste mundo, corpo de Deus...


(Rubem Alves, in “Transparências da eternidade”, Verus, 2002)





*  *  *



Nenhum comentário:

Postar um comentário