Será lançado no dia 13 de novembro, o livro "A vida não é justa", de Andréa Pachá, juíza da 1ª Vara de
Família de Petrópolis, no Rio de Janeiro, pela Editora Agir.
No livro encontramos histórias que a autora Andréa Pachá
presenciou, como juíza de Vara de Família, mas relatadas de uma forma humanizada e linguagem simples.
presenciou, como juíza de Vara de Família, mas relatadas de uma forma humanizada e linguagem simples.
Em mais de 15 anos como
magistrada, à frente de varas de família, a autora testemunhou casos de amor, ódio, términos e recomeços.
“Num processo de
terapia, a pessoa leva anos para se expor. Aí chega na frente de um
juiz que nunca viu na vida e despeja tudo”, disse a juíza, 48
de idade, casada há 20 anos, o casal tem um filho de 16 e outro de
14.
Andréa foi
vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros e
conselheira do CNJ, tendo coordenado ações para aproximar o Poder
Judiciário da população, como a criação do cadastro nacional de
adoção e as campanhas de eleições limpas e simplificação da
linguagem jurídica.
A seguir, uma das
crônicas presentes no livro.
Boa leitura!
* * *
Reconciliação
Por Andréa Pachá, -
juíza de Direito (RJ).
Sempre me senti muito
desconfortável quando, nas separações consensuais, a lei me
obrigava a perguntar ao casal se eles tinham certeza da decisão
tomada.
Ora, se procuraram um
advogado, estabeleceram as cláusulas da separação e ali estavam,
na frente de um juiz, pra encurtar aquele período de desgaste, o que
se esperava que fossem responder?
Tratava, então, de
diminuir o constrangimento e começava, assim, as audiências:
- Desculpem, não quero
parecer invasiva ou inconveniente, mas a lei manda que eu pergunte se
vocês querem mesmo se separar.
Então prosseguia
perguntando se eles ratificavam o acordo para, no mesmo ato, decretar
a separação. Simples, rápido, sem qualquer rito especial, exceto
pela exposição pública da frustração daqueles mortais que
percebiam que a felicidade perene, o até que a morte nos separe,
chegava ao fim sem pompa, sem música, sem convite e sem festa.
Dependendo do casal e
do clima, me permitia um ou outro comentário pra aliviar a tensão e
reduzir a dor da perda.
Sim, porque nossa
tendência, após anos trabalhando na mesma atividade, é perder a
capacidade de individualizar as dores e os conflitos que chegam às
nossas mesas.
Cada processo é um processo. Cada casal é um casal.
Cada fim de casamento é um fim de mundo e cada audiência é única
para aqueles que comparecem diante de um juiz e expõem as
frustrações pela incapacidade de viver um grande amor.
É uma pena que o amor
não acabe ao mesmo tempo para os dois. O amor acaba e ninguém avisa
isso pra ninguém que pretende se casar.
E a percepção do fim
acontece de repente. Não se consegue estabelecer uma data, um fato,
um porquê, mas de uma hora pra outra alguém constata que não dá
um beijo na boca do outro há mais de um mês.
Os prazeres tomam
caminhos solitários e um não consegue sequer saber o que comove ou
sensibiliza seu companheiro.
A rotina, a falta de
dinheiro, problemas com os filhos adolescentes, desemprego, estresse,
cansaço, a crise política, tudo parece conspirar para mascarar o
diagnóstico e retardar a terrível constatação captada com
perfeição pelo poeta... o nosso amor acabou, que coincidência é o
amor, nossa música nunca mais tocou...
Daí pra frente, o
casamento vira uma espécie de prorrogação, de terceiro tempo sem
tempo pra terminar e dependendo da capacidade de suportar a vida
pintada em bege, as relações podem até mesmo durar pela vida toda.
Tenho observado que,
nos processos de separação, quando não há uma nova paixão
avassaladora, as decisões são, na maioria das vezes, tomadas pelas
mulheres.
Observo, também, que quando a separação importa na
redução da capacidade financeira, os casais têm optado pela
manutenção da relação e procurado formas de convívio menos
dolorosas.
Foi, portanto, com
algum estranhamento, que vi entrar na sala de audiências o contador
Robério e professora aposentada Idalina.
Trinta e oito anos de
casamento, quatro filhas, todas casadas, seis netos, nenhum
patrimônio para partilhar, nenhum pedido de pensão alimentícia.
Na
petição inicial, nenhum ressentimento declarado ou qualquer
imputação de culpa. Pretendiam a separação por incompatibilidade
de gênios.
Formulei, então, a
burocrática pergunta: Querem mesmo se separar ou há possibilidade
de reconciliação?
Silêncio. Idalina
baixou a cabeça, encorajando Robério a se expressar.
- Ninguém quer se
separar não, excelentíssima. Nem sei porque viemos aqui.
Estava tão acostumada
com a repetição que, confesso, não sabia como prosseguir. Tentei
me manter impávida e voltei à abordagem:
- Bem, se não querem
se separar por que entraram com a ação?
- Essa mulher tá com a
cabeça virada. Mas a gente já se acertou. Aliás, passamos uma
noite maravilhosa - disse Robério, mal conseguindo conter o orgulho
da virilidade naquela idade.
Idalina nada falava.
Parecia distante e perdida. Decidi ser mais firme em apoio ao que
imaginei fosse o desejo daquela mulher.
- Olha, seu Robério.
Eu sei que esta decisão é muito difícil, que vocês viveram muitos
anos juntos, mas, quando os dois não querem, acho impossível
continuar casado. Vocês têm uma família grande, netos, mas quem
sabe não é melhor cada um seguir sua vida, não é dona Idalina? -
perguntei, cúmplice.
Pela primeira vez ela
tomou as rédeas da situação e foi firme na intervenção.
- Não é melhor, não,
doutora, melhor mesmo é continuar com ele.
Ela não sorria, não
esboçava qualquer sinal que indicasse a felicidade do reencontro.
Imaginei que pudesse estar pressionada ou submetida ao poder daquele
que exerceu o controle de uma vida inteira. Decidi que seria
solidária e transmitiria a Idalina, a segurança de que ela tanto
precisava.
É claro que aquele
comportamento não integrava meus deveres funcionais. No entanto, a
magistratura era uma das muitas funções que eu exercia na vida e é
claro que todas as minhas virtudes e vícios transpareciam de alguma
forma no exercício da profissão.
Naquela ocasião, atuei
parcialmente em favor de Idalina para compensar as diferenças
daquela relação que intui tão desigual e prossegui:
- O respeito é sempre
muito importante. E vocês devem continuar sendo amigos. Se as coisas
mudarem, quem sabe até voltam a namorar?
- Eu não quero me
separar mas preciso falar umas coisas. Por isso vim aqui.
Robério coçou a
cabeça como uma criança que se prepara para um sermão.
- Eu não aguento mais
tanta falta de atenção. Eu só quis me separar porque me sinto
muito sozinha. As crianças foram embora. A casa tá vazia. A gente
mal se fala.
Almoço e janta com a televisão ligada. Tudo que eu
falo ele não escuta. Mas a gota d'agua é o futebol. Eu não suporto
futebol todo dia.
Enquanto ele assistia ao jogo no mês passado,
disse que estava saindo de casa. Sabe o que ele respondeu? Nada.
Pediu que eu saísse da frente porque tinha sido impedimento...
Dá
pra acreditar? Impedimento?!!! Naquela mesma noite fui pra casa da
minha filha e no dia seguinte procurei o advogado.
- Mas, D. Idalina, há
quanto tempo ele assiste a futebol? - perguntei.
- A vida toda. Mais de
vinte anos.
Não pude conter o
riso. Pensei em meu pai e sua paixão alucinada pela peleja. Avaliei
os riscos que corria.
- Ele é um homem bom,
doutora. A gente lutou muito junto. Toda a vida e a gente nunca se
largou. Ele nunca teve mulher na rua.
Robério,
verdadeiramente sensibilizado, olhou para Idalina e quase num
sussurro a fez lembrar da aquisição da casa, da única viagem de
férias a Cabo Frio, da perda do filho homem num acidente de carro e
do quanto, juntos, eles dividiram toda a vida. Os dois, de mãos
dadas sobre a mesa, choravam.
Eu tentava me socorrer
do conhecimento jurídico para retomar o rumo daquela audiência e só
lembrava dos filmes e romances que lera pela vida afora.
Entendi que
sabia muito pouco da vida. Aquele casal se amava e esperava que, da
minha autoridade, viesse uma resposta para o abismo que ali se
instalou. Achei que não podia decepcioná-los.
- Olha aqui, pessoal.
Eu não vou separar vocês, não. A gente combina o seguinte:
suspendo o processo por 60 dias. Nesse período, o seu Robério só
assiste aos jogos do Flamengo. No resto do tempo, vocês saem,
passeiam um pouco pela cidade, almoçam domingo na casa das filhas,
ajudam com os netos. Tá bom assim?
Aliviados, os dois nem
me olharam. Estavam encantados um pelo outro.
Nem o advogado nem o
Ministério Público discordaram de decisão tão teratológica. Quem
ousaria depois de presenciar tanto mistério?
Antes de sair, já do
lado de fora da porta, Idalina me olha e, sorrindo, pergunta:
- É só jogo do
Flamengo mesmo, né, doutora?
* * *
Muito bom espero logo encontrar nas livrarias daqui
ResponderExcluirJ, Santa Bárbara d'Oeste - SP
Já fui a duas livraris diferentes e não estou achando o livro. Não sei como comprá-lo.
ResponderExcluirNão poderia se esperar nada menos de nossa excelentíssima Andréa Pachá. Sensacional!!!!!!
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