26 fevereiro 2013

Carta ao pai



Uma carta com mais de cem páginas...
Escrita na tentativa de digerir os conflitos e mágoas existentes entre pai e filho, e que acredita-se jamais tenha sido lida pelo seu destinatário.
Uma obra de Franz Kafka, densa e belíssima, cujo pequeno trecho coloco aqui para nossa reflexão.

*  *  *



Carta ao pai - Franz Kafka


Querido pai,

Tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti.

Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar de modo mais ou menos coerente.

E se procuro responder-te aqui por escrito, não deixará de ser de modo incompleto, porque também no ato de escrever o medo e suas conseqüências me atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento.

Para ti a questão sempre se apresentou bem simples, pelo menos enquanto falaste dela diante de mim e, sem cuidar a quem, diante de muitos outros.

Para ti as coisas pareciam ser mais ou menos assim: trabalhaste pesado durante tua vida inteira, sacrificaste tudo pelos teus filhos, e sobretudo por mim, enquanto eu vivia tranquilo por conta disso, gozei de toda a liberdade para estudar o que bem quisesse, não precisei ter nenhuma preocupação com meu sustento e portanto nenhuma preocupação, fosse qual fosse; não exigiste gratidão em troca disso, tu conheces "a gratidão de teus filhos", mas pelo menos um pouco de boa vontade, algum sinal de simpatia;  em vez disso eu sempre me encafuei de ti em meu quarto, com meus livros, com amigos malucos, com idéias extravagantes; falar de maneira aberta contigo eu jamais falei, no templo  jamais fui ao teu encontro, em Franzensbad jamais te visitei e aliás jamais tive senso de família, não me importei com o negócio nem com teus demais assuntos, a fábrica eu joguei às tuas costas e depois te abandonei,  apoiei Ottla em sua teimosia e, enquanto não movo um dedo por tua causa (nem sequer uma entrada de teatro eu trago a ti), faço tudo por estranhos.

Se resumires teu veredicto a meu respeito, te darás conta de que não me acusas de nada indecoroso ou mau, é verdade (excetuado talvez meu último propósito de casamento), mas sim de frieza, estranheza, ingratidão.

E tu me acusas de tal modo, como se fosse culpa minha, como se eu pudesse, com uma guinada no volante, por exemplo, conduzir tudo para outra direção, ao passo que tu não tens a menor culpa a não ser talvez pelo fato de ter sido demasiado bom para comigo.

Essa tua maneira usual de ver as coisas eu só considero certa na medida em que mesmo eu acredito que não tenhas a menor culpa em nosso alheamento.

Mas também eu não tenho a menor culpa.

Se eu pudesse  te levar a reconhecê-lo, então seria possível, não uma nova vida - que para isso estamos ambos velhos demais -, mas uma espécie de paz, não a cessação, mas pelo menos um abrandamento das tuas intermináveis acusações.

Curiosamente  tu tens alguma noção a respeito daquilo que estou querendo dizer.

Assim, por exemplo, disseste há algum tempo: "Eu sempre gostei de ti, mesmo que na aparência eu não tenha te tratado como outros pais costumam tratar seus filhos, justamente porque não sei fingir como eles".

Ora, pai, no que diz respeito a mim, jamais cheguei a duvidar de tua bondade para comigo, mas considero esta observação incorreta.

Tu não consegues fingir, é verdade, mas afirmar, apenas por esse motivo, que os outros pais fingem é ou pura mania de mostrar razão a fim de acabar com a discussão ou - e é isso que de fato acontece, na minha opinião - a expressão disfarçada de que as coisas entre nós não estão em ordem e de que tu ajudaste a provocá-las, mas sem culpa. 

Se de fato pensas assim, então estamos de acordo.

Naturalmente, não quero dizer que me tornei o que sou apenas através da tua ascendência. 

Isso seria por demais  exagerado (e eu até me inclino a esse exagero).

É bem possível que eu, mesmo se tivesse crescido totalmente livre da tua influência, não pudesse me tornar um ser humano na medida em que o teu coração o desejava.

É provável que mesmo assim eu me tornasse um homem débil, amedrontado, hesitante, inquieto, nem um Robert Kafka nem um Karl Hermann, mas de todo diferente do que hoje sou, e nós poderíamos suportar um ao outro de forma maravilhosa.

Eu teria sido feliz em ter a ti como amigo, como chefe, como tio, como avô, até mesmo (embora já mais hesitante) como sogro.

Mas justamente como pai tu foste demasiado forte para mim, sobretudo porque meus irmãos morreram ainda pequenos, minhas irmãs só vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar por inteiro e sozinho o primeiro golpe, e para isso eu era fraco demais.

Compara-nos um com o outro: eu, para expressá-lo de maneira bem atrevida, um Lõwy com um certo fundo kafkiano," mas que por certo não é acionado pela vontade de viver, de fazer negócios e de conquistar kafkianas, mas por um aguilhão lõwyano, que atua de maneira mais secreta, mais tímida, em outra direção e muitas vezes inclusive cessa de todo.

Tu, ao contrário, um verdadeiro Kafka na força, na saúde, no apetite, na potência da voz, no dom de falar, na auto-satisfação, na superioridade diante do mundo, na perseverança, na presença de espírito, no conhecimento dos homens, em certa generosidade, naturalmente também com todos os defeitos e fraquezas que fazem parte dessas qualidades, nas quais teu temperamento e por vezes tua cólera te precipitam.

Talvez não sejas um Kafka completo em tua visão geral de mundo, pelo menos na medida em que posso comparar-te a tio Philipp, a Ludwig, a Heinrich.

Isso é curioso, mas aqui também não vejo com muita clareza. 

É que eles eram mais alegres, mais dispostos, mais desenvoltos, mais levianos, menos rigorosos do que tu. (Nisso, aliás, herdei muito de ti e administrei a herança bem demais, sem no entanto ter no meu ser os contrapesos necessários conforme tu os tens.)

Por outro lado, tu também atravessaste outros tempos no que diz respeito a isso, foste talvez mais alegre, antes de os teus filhos, sobretudo eu, te decepcionarem e oprimirem em casa (pois quando chegavam estranhos, eras diferente) e talvez agora voltaste a ficar mais alegre, uma vez que os netos e o genro te devolveram um pouco daquele calor que os filhos não puderam te dar, a não ser Valli, talvez.

Seja como for, éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para o outro, que se alguém por acaso quisesse calcular por antecipação como eu, o filho que se desenvolvia devagar, e tu, o homem feito, se comportariam um em relação ao outro, poderia supor que tu simplesmente me esmagarias sob os pés, a ponto de não sobrar nada de mim.

E isso não chegou a acontecer; o que restou vivo não pode ser calculado, mas talvez tenha acontecido algo ainda pior.

Tenho de pedir encarecidamente, no entanto, que não te esqueças de que nem de longe acredito em alguma culpa da tua parte.

Tu influíste sobre mim conforme tinhas de influir, só que tens de parar de considerar uma maldade  especial da minha parte o fato de eu ter sucumbido a essa influência.

Eu era uma criança medrosa, é claro que apesar disso também fui teimoso, como toda criança é; claro que minha mãe também me estragou com seus mimos, mas não posso acreditar que eu tenha me mostrado difícil de ser conduzido, não posso acreditar que uma palavra amistosa, um pegar-pela-mão tranqüilo, um olhar bondoso não pudesse conseguir de mim tudo o que se queria.

No fundo és, pois, um homem bom e brando (o que se segue não vai contradizê-lo, estou falando apenas da aparência com a qual exercias influência sobre a criança), mas nem toda criança tem a resistência e o destemor de procurar tanto quanto for necessário para encontrar a bondade. [...]

Franz Kafka – in “Carta ao Pai”

(tradução Marcelo Backes)


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Sobre a obra:

Escrita aos 36 anos - provavelmente entre 10 e 19 de novembro de 1919 -, o manuscrito tem mais de cem páginas e, concentrado nele, Kafka se fechou mais do que nunca dentro de si mesmo, evitando inclusive as visitas que recebia.

A letra grande e cuidada, o texto de poucas correções parecem demonstrar que Kafka escreveu a Carta na intenção de enviá-la de fato ao pai, coisa que pode ser depreendida também de algumas anotações do autor nos Diários e em outras cartas.

Kafka pensava poder melhorar a relação com seu pai através da Carta, e Max Brod chega a testemunhar que ela foi entregue à mãe. 

Esta teria se recusado a encaminhá-la adiante e, "provavelmente acompanhada de algumas palavras bondosas, devolveu-a a Franz"; sabedora, talvez, de que o marido sequer a leria.

Hermann pouco se interessava pelos problemas do filho...

Por que Kafka jamais entregou a Carta ao pai a seu destinatário, nunca ficou claro.

Se por ventura achou que ele de fato não se interessaria por ela ou se passou a duvidar do valor documental do manuscrito, ficará sendo um mistério.

Franz Kafka foi um dos maiores escritores de ficção do século XX. 

Nasceu em Praga, Áustria-Hungria (atual República Checa). 

Em obras como a novela A Metamorfose (1915) e romances como O Processo (1925) e O Castelo (1926), ele retrata indivíduos preocupados com o pesadelo de um mundo impessoal e burocrático.  

Seus textos estão entre os mais influentes da literatura ocidental.



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