Sou um estrangeiro, e há na vida do estrangeiro uma solidão
pesada e um isolamento doloroso.
Sou assim levado a pensar sempre numa pátria encantada que
não conheço, e a sonhar com os sortilégios de uma terra longínqua que nunca visitei.
Sou um estrangeiro para meus parentes e amigos.
Quando encontro um deles, penso:
"Quem é ele? Onde
o encontrei? Que me une a ele? Por que me aproximo dele e o freqüento?"
Sou um estrangeiro para minha alma.
Quando minha língua fala, meu ouvido estranha-lhe a voz.
Quando meu Eu interior ri ou chora, ou se entusiasma, ou
treme, meu outro Eu estranha o que ouve e vê, e minha alma interroga minha alma.
Mas permaneço desconhecido
e oculto, velado pelo nevoeiro, envolto no silêncio.
Sou um estrangeiro para o meu corpo.
Todas as vezes que me olho num espelho, vejo no meu rosto
algo que minha alma não sente, e percebo nos meus olhos algo que minhas profundezas não reconhecem.
Quando caminho nas ruas da cidade, os meninos me seguem,
gritando: "Eis o cego, demos-lhe um cajado que o
ajude."
Fujo deles.
Mas encontro outro grupo de raparigas que me seguram pelas
abas da roupa, dizendo: "É surdo como uma pedra.
Enchamos seus ouvidos com canções de
amor e desejo."
Deixo-as, correndo.
Depois, encontro um grupo de homens que me cercam, dizendo: "É mudo como um túmulo, vamos endireitar-lhe a
língua."
Fujo deles com medo.
E encontro um grupo de velhos que apontam para mim com dedos
trêmulos, dizendo: "É um louco que perdeu a
razão ao freqüentar as fadas e os feiticeiros."
Sou um estrangeiro, e já percorri o mundo do Oriente ao
Ocidente sem encontrar minha terra natal, nem quem me conheça ou se lembre de mim.
Acordo pela manhã, e acho-me prisioneiro num antro escuro,
freqüentado por cobras e insetos.
Se sair à luz, a sombra do meu corpo me segue, e as sombras
de minha alma me precedem, levando-me aonde não
sei, oferecendo-me coisas de que não preciso, procurando algo que não entendo.
E quando chega a noite, volto para casa e deito-me numa cama
feita de plumas de avestruz e de espinhos dos campos.
Idéias estranhas atormentam minha mente, e inclinações
diversas, perturbadoras, alegres, dolorosas, agradáveis.
À meia-noite, assaltam-me fantasmas de tempos idos.
E almas de nações esquecidas me fitam.
Interrogo-as, recebendo por toda a resposta um sorriso.
Quando procuro segurá-las, fogem de mim e desvanecem-se como
fumaça.
Sou um estrangeiro neste mundo.
Sou um estrangeiro, e não há no mundo quem conheça uma única
palavra do idioma da minha alma.
Caminho pela selva inabitada, e vejo os rios correrem e
subirem do fundo do vale ao cume da montanha.
E vejo as árvores desnudas se cobrirem de folhas, e
florirem, e frutificarem, e perderem
suas folhas num só minuto. Depois, suas ramas caem no chão e se
transformam em cobras pintalgadas.
E as aves do céu voam, pousam, cantam gorjeiam e depois
param, abrem as asas e viram mulheres nuas, de cabelo solto e pescoços esticados. E olham
para mim com sensualidade. E estendem suas mãos brancas e perfumadas. Mas, de repente,
estremecem e somem como nuvens, deixando o eco de risos irônicos.
Sou um estrangeiro neste mundo.
Sou um poeta que põe em prosa o que a vida põe em verso, e
em versos o que a vida põe em prosa.
Por isto, permanecerei um estrangeiro.
Até que a morte me
rapte e me leve para minha pátria...
(Khalil Gibran)
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