19 março 2013

Sou um estrangeiro nesse mundo



Sou um estrangeiro, e há na vida do estrangeiro uma solidão pesada e um isolamento doloroso.

Sou assim levado a pensar sempre numa pátria encantada que não conheço, e a sonhar com os sortilégios de uma terra longínqua que nunca visitei.

Sou um estrangeiro para meus parentes e amigos.

Quando encontro um deles, penso:
"Quem é ele? Onde o encontrei? Que me une a ele? Por que me aproximo dele e o freqüento?"

Sou um estrangeiro para minha alma.

Quando minha língua fala, meu ouvido estranha-lhe a voz.

Quando meu Eu interior ri ou chora, ou se entusiasma, ou treme, meu outro Eu estranha o que ouve e vê, e minha alma interroga minha alma. 

Mas permaneço desconhecido e oculto, velado pelo nevoeiro, envolto no silêncio.

Sou um estrangeiro para o meu corpo.

Todas as vezes que me olho num espelho, vejo no meu rosto algo que minha alma não sente, e percebo nos meus olhos algo que minhas  profundezas não reconhecem.

Quando caminho nas ruas da cidade, os meninos me seguem, gritando: "Eis o cego, demos-lhe um cajado que o ajude."

Fujo deles.

Mas encontro outro grupo de raparigas que me seguram pelas abas da roupa, dizendo: "É surdo como uma pedra. Enchamos seus ouvidos com  canções de amor e desejo."

Deixo-as, correndo.

Depois, encontro um grupo de homens que me cercam, dizendo: "É mudo como um túmulo, vamos endireitar-lhe a língua."

Fujo deles com medo.

E encontro um grupo de velhos que apontam para mim com dedos trêmulos, dizendo: "É um louco que perdeu a razão ao freqüentar as fadas e os feiticeiros."

Sou um estrangeiro, e já percorri o mundo do Oriente ao Ocidente sem encontrar minha terra natal, nem quem me conheça ou se lembre de mim.

Acordo pela manhã, e acho-me prisioneiro num antro escuro, freqüentado por cobras e insetos.

Se sair à luz, a sombra do meu corpo me segue, e as sombras de minha alma me precedem, levando-me  aonde não sei, oferecendo-me coisas de que não preciso, procurando algo que não entendo.

E quando chega a noite, volto para casa e deito-me numa cama feita de plumas de avestruz e de espinhos dos campos.

Idéias estranhas atormentam minha mente, e inclinações diversas, perturbadoras, alegres, dolorosas, agradáveis.

À meia-noite, assaltam-me fantasmas de tempos idos.

E almas de nações esquecidas me fitam.

Interrogo-as, recebendo por toda a resposta um sorriso.

Quando procuro segurá-las, fogem de mim e desvanecem-se como fumaça.

Sou um estrangeiro neste mundo.

Sou um estrangeiro, e não há no mundo quem conheça uma única palavra do idioma da minha alma.

Caminho pela selva inabitada, e vejo os rios correrem e subirem do fundo do vale ao cume da montanha.

E vejo as árvores desnudas se cobrirem de folhas, e florirem, e frutificarem, e  perderem suas folhas num só minuto. Depois, suas ramas caem no chão e se transformam em cobras pintalgadas.

E as aves do céu voam, pousam, cantam gorjeiam e depois param, abrem as asas e viram mulheres nuas, de cabelo solto e pescoços esticados. E olham para mim com sensualidade. E estendem suas mãos brancas e perfumadas. Mas, de repente, estremecem e somem como nuvens, deixando o eco de risos irônicos.

Sou um estrangeiro neste mundo.

Sou um poeta que põe em prosa o que a vida põe em verso, e em versos o que a vida põe em prosa.

Por isto, permanecerei um estrangeiro.

Até que a morte me rapte e me leve para minha pátria...


(Khalil Gibran)


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