08 dezembro 2013

O menino que fui volta sempre em Dezembro


Não sei se dezembro mexe com vocês como mexe comigo. 

Provavelmente não. 

Amar dezembro como eu o amo, esperá-lo como eu o espero, senti-lo como eu o sinto, reconheço que parece coisa de criança. 

E é. 

Às vezes, o menino que eu fui há tanto tempo volta e assume a direção do homem maduro que eu já deveria ser. Em dezembro o menino sempre vem. Vem e altera minha vida.

Logo nos primeiros dias do mês, já acordo diferente. As notícias do rádio, da TV e do jornal são aquelas de sempre: doença, miséria, fome, tragédia, desgraça, destruição. Há quem mata por nada. Há gente humilhada, gente ofendida, gente espezinhada, gente ressentida. Pessoas que acham o otimismo um escárnio e consideram a felicidade só uma palavra longa, sem nenhum significado.

Gente que sofre em dezembro tanto quanto sofre todo mês, de janeiro a novembro. Eu sei. Mas em dezembro eu sempre acredito que nem tudo esta perdido, que alguma coisa pode mudar. Defeito? Acho que sim. Ingenuidade? Creio que é. E tenho certeza de que herdei os dois, o defeito e a ingenuidade, de minha mãe.

Quando chegava dezembro, minha mãe esquecia as mágoas, fingia não estar sentindo mais a sinusite que atormentava os seus dias e concentrava-se toda nos preparativos para o Natal.

O Natal, para ela, eram os presentes, a árvore, os enfeites, a ceia, as nozes, o doce de semente de papoula cuja receita, uma preciosidade, tinha atravessado o mar e chegado com a família ao Brasil.

O Natal era isso tudo e, mais importante, eram os filhos reunidos todos em volta da mesa, tentando esconder as lágrimas trazidas pela simples, mas comovente Noite Feliz.

Chorávamos todos, no Natal, e sabíamos muito bem por quê. 

Chorávamos porque pressentíamos que um dia nos faltaria até aquele raro momento de comunhão, aquele instante único no ano, fruto da tenacidade daquela mulher que, chorando mais do que todos nós, dava graças a Deus por ter conseguido de novo, pelo menos por uma noite, colar os estilhaços de sua família.

Ela procurava nos ensinar, Natal após Natal, que tínhamos nascido para viver juntos. E nós sabíamos que passados aqueles instantes mágicos, voltaríamos a nos estranhar, a nos maldizer, a nos afastar.

Sabíamos que, um dia, não pousariam mais sobre nós aqueles olhos azuis, que não nos reuniríamos mais sob o irresistível apelo daquela doce voz.

Minha mãe amava dezembro porque dezembro era o mês do Natal e porque acreditava que, na época do Natal, as pessoas se tornavam melhores e os milagres se tornavam possíveis.

De janeiro a novembro, pedir-lhe algo que não pudesse dar era deixá-la triste. Em dezembro, era deixá-la arrasada. Ela sempre achou, até o fim, que no mês do nascimento de Jesus, não se devia negar nada a ninguém.

Conhecendo essa fraqueza do seu coração, eu lhe pedi uma vez, num longínquo dezembro, que ela me trouxesse do centro, onde ia fazer as últimas compras para o Natal, um almanaque de histórias em quadrinhos. 

Foi pura maldade do menino que eu era. O almanaque era caro e eu não ignorava que o dinheiro para a ceia do dia 24, arrancado com tanto sacrifício do meu pai, estava bem mais curto do que em outros anos. Foi o que ela me disse. Insisti, bati o pé, chorei. Quando saiu, ela estava quase chorando também.

Algumas horas depois, quando ela voltou e começou a colocar os pacotes em cima da mesa, eu não lhe dei tempo nem de tomar água. Quis logo saber se havia comprado o que eu tinha pedido.

Suspirando, ela, do fundo de uma sacolinha, puxou o almanaque. Só então eu notei que suas mãos e seus braços estavam feridos. Baixando os olhos, vi também dois machucados enormes nos joelhos. Perguntei o que tinha acontecido e minha mãe me contou que, quando o bonde tomado por ela na Praça da árvore se pôs em movimento, meu almanaque havia deslizado do seu colo e caído na rua.

Prevendo que eu não ia acreditar naquilo, ela, desesperada, saltou do bonde e estatelou-se com os pacotes no chão. Por pouco não foi atropelada por um carro. O motorista, furioso, tinha xingado minha mãe de louca. Vendo-a desamassar cuidadosamente os pacotes, senti que o motorista não tinha errado ao xingá-la. Ela era louca, sim. Louca de amor pelos filhos, pela família, pelo Natal.

Desde esse remoto dia, toda vez que dezembro vem eu lamento não ter herdado um pouco mais dessa saudável loucura, um pouco mais dessa bendita ingenuidade de minha mãe.

Gostaria de sonhar, com a mesma intensidade com que ela sonhava, gostaria de acreditar, com a mesma intensidade com que ela acreditava, que em dezembro os milagres são possíveis, que em dezembro tudo pode mudar.

(Raul Drewnick)


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