[...] “Tomar uma decisão
de ter um filho é algo que irá mudar sua vida inteira de forma
inexorável. Dali para frente, para sempre, o seu coração caminhará
por caminhos fora do seu corpo.“
Aí as idéias puseram
a se movimentar por conta própria. Pensei na minha condição de
pai.
É verdade: pai é
alguém que, por causa de um filho, tem sua vida inteira mudada de
forma inexorável. Isso não é verdadeiro do pai biológico. É
fácil demais ser pai biológico. Pai biológico não precisa ter
alma. Um pai biológico se faz num momento.
Mas há um pai que é
um ser da eternidade: aquele cujo coração caminha por caminhos fora
do seu corpo. Pulsa, secretamente, no corpo do seu filho (muito
embora o filho não saiba disto).
Lembrei-me dos meus
sentimentos antigos de pai, diante dos meus filhos adormecidos.
Veio-me à mente a imagem de um “ninho“.
Bachelard, o
pensador mais sensível que conheço, amava os ninhos e escreveu
sobre eles. Imaginou que, “para o pássaro, o ninho é
indiscutivelmente uma cálida e doce morada. É uma casa de vida:
continua a envolver o pássaro que sai do ovo. Para este, o ninho é
uma penugem externa antes que a pele nua encontre sua penugem
corporal.“
Era isso que eu queria
ser. Eu queria ser ninho para os meus filhos pequenos. Queria que meu
corpo fosse um ninho-penugem que os protegesse, um ninho que balança
mansamente no galho de uma árvore ao ritmo de uma canção de ninar…
Que felicidade enche o
coração de um pai quando o filho que ele tem no colo se abandona e
adormece! Adormecida, a criança está dizendo: “tudo está bem;
não é preciso ter medo“.
Deitada adormecida nos
braços-ninho do seu pai ela aprende que o universo é um ninho! Não
importa que não seja! Não importa que os ninhos estejam todos
destinados ao abandono e ao esquecimento!
A alma não se alimenta de
verdades. Ela se alimenta de fantasias. O ninho é uma fantasia
eterna. Jung deveria tê-lo incluído entre os seus arquétipos!
“O ninho leva-nos
de volta à infância, a uma infância!“ (Bachelard).
Aquela cena, a criança
adormecida nos braços do pai, nos reconduz à cena de uma criancinha
adormecida na estrebaria de Belém! Tudo é paz! Desejaríamos que
ela, a cena, não terminasse nunca! Que fosse eterna!
É impossível calcular
a importância desses momentos efêmeros na vida de uma criança. É
impossível calcular a importância desses momentos efêmeros na vida
de um pai. O efêmero e o eterno abraçados num único momento!
“Conter o infinito
na palma da sua mão e a eternidade em uma hora“: o pai que tem
o seu filho adormecido nos seus braços é um poeta! Essas palavras
do poeta William Blake bem que poderiam ser suas.
Um homem que guarda
memórias de ninho na sua alma tem de ser um homem bom. Uma criança
que guarda memórias de um ninho em sua alma tem de ser calma!
Mas logo o pequeno
pássaro começará a ensaiar seus vôos incertos. Agora não serão
mais os braços do pai, arredondados num abraço, que irão definir o
espaço do ninho. Os braços do pai terão de se abrir para que o
ninho fique maior.
E serão os olhos do
pai, no espaço que seus braços já não podem conter, que irão
marcar os limites do ninho. A criança se sente segura se, de longe,
ela vê que os olhos do seu pai a protegem.
Olhos também são colos.
Olhos também são ninhos. “Não tenha medo. Estou aqui! Estou
vendo você“: é isso o que eles dizem, os olhos do pai.
O que a criança deseja
não é liberdade. O que ela deseja é excursionar, explorar o espaço
desconhecido – desde que seja fácil voltar.
Tela de Van Gogh. É um
jardim. No lado direito do jardim, mãe e criança que acabam de
chegar. Ao lado esquerdo o pai, jardineiro, agachado com os braços
estendidos na direção do filho. É preciso que o pai esconda o seu
tamanho, que ele esteja agachado para que seus olhos e os olhos do
seu filho se contemplem no mesmo nível.
A cena é como um
acorde suspenso, que pede uma resolução. É certo que o filho
largará a mão da mãe e virá correndo para o pai… E a fantasia
pinta a cena final de felicidade que o pintor não pode pintar: o pai
pegando o filho no colo, os dois rindo de felicidade…
O tempo passa. Os
pássaros tímidos aprendem a voar sem medo. Já não necessitam do
olhar tranquilizador do pai. É a adolescência. Ser pai de um
adolescente nada tem a ver com ser pai de uma criança.
Pobre do pai que
continua a estender os braços para o filho adolescente, como na tela
de Van Gogh! Seus braços ficarão vazios. Como se envergonharia um
adolescente se seu pai fizesse isso, na presença dos seus
companheiros! É o horror de que os pássaros companheiros de vôo o
vejam como um pássaro que gosta de ninho!
Adolescente não quer
ninho. Adolescente quer asas. Os ninhos, agora, só servem como
pontos de partida para vôos em todas as direções. Liberdade, voar,
voar… A volta ao ninho é o momento que não se deseja. Porque a
vida não está no ninho, está no vôo. Os ninhos se transformam em
gaiolas.
Se eles procuram os
olhos dos pais não é para se certificar de que estão sendo vistos
mas para se certificar de que não estão sendo vistos! Aos pais só
resta contemplar, impotentes, o vôo dos filhos, sabendo que eles
mesmos não podem ir.
Nos espaços por onde
seus filhos voam os ninhos são proibidos. Mas eles terão de voltar
ao ninho, mesmo contra a vontade. E o pai se tranquiliza e pode
finalmente dormir ao ouvir, de madrugada, o barulho da chave na
porta: “Ele voltou…“
Mas chega o momento
quando os filhos partem para não mais voltar.
Através da minha
janela vejo um ninho que rolinhas construíram nas folhas de uma
palmeira.
A pombinha está
chocando seus ovos. Vejo sua cabecinha aparecendo fora do ninho. Mas
numa outra folha da mesma palmeira há um outro ninho, abandonado.
Esse é o destino dos ninhos, de todos os ninhos: o abandono.
Gibran Khalil Gibran
escreveu, no seu livro O Profeta, um texto dedicado aos filhos. Não
sei de cor suas precisas palavras. Mas vou tentar reconstrui-las. É
aos pais que ele se dirige.
“Vossos filhos não
são vossos filhos. Vossos filhos são flechas. Vós sois o arco que
dispara a flecha. Disparadas as flechas elas voam para longe do arco.
E o arco fica só.“
Esse é o destino dos
pais: a solidão. Não é solidão de abandono. E nem a solidão de
ficar sozinho. É a solidão de ninho que não é mais ninho. E está
certo.
Os ninhos deixam de ser
ninhos porque outros ninhos vão ser construídos. Os filhos partem
para construir seus próprios ninhos e é a esses ninhos que eles
deverão retornar.
Assim é na natureza.
Assim é com os bichos. Deveria ser conosco também. Mas não é.
Quem é pai tem o
coração fora de lugar, coração que caminha, para sempre, por
caminhos fora do seu próprio corpo. Caminha, clandestino, no corpo
do filho.
Dito pela Adélia:
“Pior inferno é ver um filho sofrer sem poder ficar no lugar
dele.“
Dito pelo Vinícius,
escrevendo ao filho: “Eu, muitas noites, me debrucei sobre o teu
berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais
indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que
cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua…“
Sei que é inevitável
e bom que os filhos deixem de ser crianças e abandonem a proteção
do ninho.
Eu mesmo sempre os
empurrei para fora.
Sei que é inevitável
que eles voem em todas as direções como andorinhas adoidadas.
Sei que é inevitável
que eles construam seus próprios ninhos e eu fique como o ninho
abandonado no alto da palmeira…
Mas, o que eu queria,
mesmo, era poder fazê-los de novo dormir no meu colo…
(Rubem Alves)
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