10 junho 2014

A música da alma

  
Angelus Silesius (1624-1677), místico que só escrevia poesia, disse o seguinte:
"Temos dois olhos. Com um contemplamos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro contemplamos as coisas da alma, eternas, que permanecem".

Eis aí um bom início para compreender os mistérios do olhar.

Para entender os mistérios do ouvir, eu escrevo uma variação:
"Temos dois ouvidos. Com um escutamos os ruídos do tempo, passageiros, que desaparecem. Com o outro ouvimos a música da alma, eterna, que permanece".

A alma nada sabe sobre a história, o encadeamento dos eventos que acontecem uma vez e nunca mais se repetem.

Na história, a vida está enterrada no "nunca mais". A alma, ao contrário, é o lugar onde o que estava morto volta a viver.

Os poemas não são seres da história. Se eles pertencessem à história, uma vez lidos nunca mais seriam lidos: ficariam guardados no limbo do "nunca mais".
Mas a alma não conhece o "nunca mais".
Ela toma o poema, escrito há muito tempo, no tempo da história (escrito no tempo da história, sim, mas sem pertencer à história), ela o lê, e ele fica vivo de novo: apossa-se do seu corpo, faz amor com ele, provoca riso, choro, alegria. 
A gente quer que os poemas sejam lidos de novo, ainda que os saibamos de cor, tantas foram as vezes que os lemos. (...)

(Rubem Alves)



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