Angelus Silesius (1624-1677), místico que só escrevia
poesia, disse o seguinte:
"Temos dois olhos. Com um contemplamos as coisas do
tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro contemplamos as coisas da alma,
eternas, que permanecem".
Eis aí um bom início para compreender os mistérios do olhar.
Para entender os mistérios do ouvir, eu escrevo uma
variação:
"Temos dois ouvidos. Com um escutamos os ruídos do
tempo, passageiros, que desaparecem. Com o outro ouvimos a música da alma,
eterna, que permanece".
A alma nada sabe sobre a história, o encadeamento dos
eventos que acontecem uma vez e nunca mais se repetem.
Na história, a vida está enterrada no "nunca
mais". A alma, ao contrário, é o lugar onde o que estava morto volta a
viver.
Os poemas não são seres da história. Se eles pertencessem à
história, uma vez lidos nunca mais seriam lidos: ficariam guardados no limbo do
"nunca mais".
Mas a alma não conhece o
"nunca mais".
Ela toma o poema, escrito há muito
tempo, no tempo da história (escrito no tempo da história, sim, mas sem
pertencer à história), ela o lê, e ele fica vivo de novo: apossa-se do seu
corpo, faz amor com ele, provoca riso, choro, alegria.
A gente quer que os
poemas sejam lidos de novo, ainda que os saibamos de cor, tantas foram as vezes
que os lemos. (...)
(Rubem Alves)
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário