Casa de mãe depois que os filhos se vão é um oratório.
Amanhece e anoitece prece.
Já não temos acesso àquelas coisinhas básicas do dia a dia,
as recomendações e perguntas que tanto a eles desagradavam e enfureciam: com
quem vai, onde é, a que horas começa, a que horas termina, a que horas você
chega, vem cá menina, pega a blusa de frio, cadê os documentos, filho.
Impossibilitados os avisos e recomendações, só nos resta a
oração, daí tropeçamos todos os dias em nossos santos e santas de preferência,
e nossa devoção levanta as mãos já no café da manhã e se deita conosco.
Casa de mãe depois que os filhos se vão é lugar de silêncio,
falta nela a conversa, a risada, a implicância, a displicência, a
desorganização.
Falta panela suja, copos nos quartos, luzes acesas sem
necessidade...aliás, casa de mãe depois que os filhos se vão vive acesa. É um
iluminado protesto a tanta ausência.
Casa de mãe depois que os filhos se vão tem sempre o mesmo
cheiro.
Falta-lhe o perfume que eles
passam e deixam antes da balada, falta cheiro de shampoo derramado no banheiro,
falta a embriaguez de alho fritando para
refogar arroz, falta aroma da cebola que a gente pica escondido porque um deles
não gosta ( mas como fazer aquele prato sem colocá-la?), falta a cara boa
raspando o prato, o "isso tá bão, mãe".
O melhor agradecimento é um prato vazio,
quando os filhos ainda estão. Agora falta cozinha cheia de desejos atendidos.
Casa de mãe depois que os filhos se vão é um recorte no
tempo, é um rasgo na alma.
É quarto demais, e gente de menos.
É retrato de um tempo em que a gente vivia distraída da
alegria abundante deles.
Um tempo de maturar frutos, para dá-los a colher ao
mundo.
Até que esse dia chega, e lá se vai seu fruto ganhar estrada, descobrir
seus rumos, navegar por conta própria com as mãos no leme que você, um dia, lhe
mostrou como manejar.
Aí fica a casa, e nela, as coisas que eles não levam de
jeito nenhum para a nova vida, mas também não as dispensam: o caminhão da
infância, a boneca na porta do quarto, os livros, discos, papéis e desenhos e
fotografias - todas te olhando em estranha provocação.
Casa de mãe depois que os filhos se vão não é mais casa de
mãe. É a casa da mãe. Para onde eles
voltam num feriado, em um final de semana, num pedaço de férias.
Casa de mãe depois que os filhos se vão é um grande portão esperando
ser aberto.
É corredor solitário aguardando que eles o atravessem rumo aos
quartos.
É área de serviço sem serviço.
Casa de mãe depois que os filhos se vão tem sempre alguém
rezando, um cachorrinho esperando, e muitos dias, todos enfileirados,
obedientes e esperançosos da certeza de qualquer dia eles chegam e você vai
agradecer por todas as suas preces terem sido atendidas.
Porque, vamos combinar, não é que você fez direitinho seu
trabalho, e estava certo quem disse que quem sai aos seus não degenera e
aqueles frutos não caíram longe do pé?
E saudade, afinal, não é mesmo uma casa que se chama mãe?
(Miryan Lucy Rezende)
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