02 dezembro 2019

QUANDO PERDEMOS NOSSO PAI



A morte sempre vem sem avisar. 
Até mesmo os doentes terminais não esperam morrer hoje. Talvez em uma semana, mas não agora. Não hoje.

A morte do meu pai foi ainda mais inesperada. Ele se foi aos 27 anos, assim como muitos músicos dos chamados ’Clube dos 27′. Era jovem, muito jovem. 
Meu pai não era nem músico nem famoso. 
O câncer não escolhe as suas vítimas. 
Ele morreu quando eu tinha apenas 8 anos, o suficiente para que eu sentisse saudade por toda a minha vida. 
Se ele tivesse morrido antes, eu não teria lembranças e não sentiria nenhuma dor, mas, ao mesmo tempo, talvez eu não pudesse dizer que tive um pai. E eu me lembro dele. Eu tive um pai.

Se ele não tivesse morrido, teria me feito rir com as suas piadas e teria me beijado no rosto antes de dormir. Talvez tivesse me obrigado a ser fanático pelo seu time de futebol, e teria me explicado algumas coisas de um jeito que nem a minha mãe conseguiu.

Ele nunca me disse que morreria tão cedo. Até mesmo quando estava na cama do hospital, cheio de tubos enfiados no corpo, ele não disse uma palavra sequer. Meu pai continuava fazendo planos para o próximo ano, mesmo sabendo que ele já não estaria entre nós no próximo mês. No ano seguinte, iríamos pescar, viajaríamos e conheceríamos lugares novos. O próximo ano seria maravilhoso. Esse era o nosso sonho.

Acho que ele pensava que isso me daria sorte. Fazer planos para o futuro era a sua forma de manter a esperança. Me fez rir até o final. Ele sabia o que aconteceria, mas, mesmo assim, nunca me disse nada. Ele não queria me ver chorar.

Um dia, minha mãe veio me buscar na escola e fomos direto pro hospital. O médico deu a notícia com toda a delicadeza do mundo. Minha mãe começou a chorar porque ela ainda tinha uma pequena esperança. 

Eu estava em choque. O que isso queria dizer? Os médicos não curam tudo? Fui traído. Gritei de raiva. Até que entendi que meu pai já não estava mais conosco. E comecei a chorar.

Mas aí, uma coisa aconteceu. Uma enfermeira veio até mim com uma caixa debaixo do braço. A caixa estava cheia de envelopes com frases, ao invés de endereços. A enfermeira me deu apenas uma das cartas.

«Seu pai pediu para eu te dar essa caixa. Ele ficou a semana inteira escrevendo estas cartas e queria que, hoje, você lesse a primeira delas. Seja forte».

No envelope estava escrito: ’Quando eu não estiver mais aqui’. Eu abri a carta.

Filho,
Se você está lendo esta carta, significa que eu estou morto. Sinto muito, eu sabia que isso iria acontecer.
Não queria te falar, não queria que você chorasse. A decisão de não contar foi minha. Acho que a pessoa que está perto da morte tem o direito de ser um pouco egoísta.
Eu ainda tenho muito para te ensinar. Você ainda não sabe quase nada. Por isso que eu escrevi estas cartas. Não abra até que chegue o momento indicado, certo? Esse é o nosso acordo.
Te amo. Cuida da mamãe. Agora você é o homem da casa.

Com amor, papai.

P.S. Não escrevi cartas para a mamãe, pra ela eu deixei o carro.

A carta me tranquilizou e me fez sorrir. 
Meu pai conseguiu fazer uma coisa super original.
Essa pequena caixa se transformou no objeto mais importante do mundo pra mim. 
Eu falei pra minha mãe que ela não podia abrir. 
As cartas eram pra mim e ninguém mais deveria ler. 
Decorei tudo que estava escrito nos envelopes. 
A única coisa que eu tinha que fazer era esperar o momento de cada uma delas… até que eu me esqueci delas.
Sete anos depois nos mudamos para outra casa e eu não tinha ideia de onde havia deixado a caixa. Esqueci. Até que uma coisa aconteceu.

Minha mãe não se casou de novo. 
Não sei por que, talvez ela quisesse pensar que meu pai foi o amor da sua vida. 
Durante um período ela teve um namorado que não prestava. Para mim, ela se rebaixava ao sair com alguém como ele. Ele não a respeitava. Ela merecia coisa melhor que um homem que conheceu num bar.

Ainda me lembro do tapa que me deu quando eu disse a palavra «bar». Reconheço: eu mereci. Ainda com a pele do rosto ardendo do tapa, me lembrei da caixa com as cartas e de um envelope em especial, onde estava escrito ’Quando você tiver a briga mais feia com a sua mãe’.

Procurei em cada canto do meu quarto e encontrei a caixa dentro de uma mala que estava no alto do armário. Vi os envelopes e percebi que me esqueci de abrir a carta que dizia ’Quando você der seu primeiro beijo’. Me odiei por isso e decidi abri-la depois. Ao final, encontrei a carta que eu procurava.

Vá até ela e peça desculpas.
Não sei qual a razão da briga, e não sei quem tem razão, mas eu conheço muito bem a sua mãe. Vá até ela, é o melhor que você pode fazer.
Ela é sua mãe, te ama mais do que qualquer coisa no mundo. Você sabia que você nasceu de parto normal porque alguém disse que isso seria melhor para você? Você alguma vez viu como uma mulher dá a luz? Você precisa de outra prova de amor?
Peça perdão. Ela vai te perdoar.
Te amo, teu pai.

Meu pai não era um grande escritor, era um simples funcionário de um banco, mas as suas palavras sempre me influenciaram muito. Eram palavras sábias, ainda mais para um adolescente de 15 anos, como eu.

Fui rapidamente ao quarto de minha mãe. Eu estava chorando quando ela se virou e me olhou nos olhos. Me lembro que eu fui até ela com a carta na mão. Ela me abraçou e ficamos ali parados, em silêncio.

Fizemos as pazes e conversamos um pouco sobre o assunto. Era como se ele estivesse ali, sentado conosco. Minha mãe, eu e uma parte do meu pai, uma parte que ele tinha deixado a nós dois numa folha de papel.

Passou algum tempo até a próxima carta: ’Quando você perder a virgindade’.
Parabéns, filho.
Não se preocupe, com o tempo sempre melhora. A primeira vez dá medo. Minha primeira vez foi com uma mulher muito feia e que, além disso, era uma prostituta.
Meu maior medo era que você perguntasse para a sua mãe o que é a virgindade ao ler essa palavra sobre este envelope.
Com amor, papai.

Meu pai esteve comigo durante toda a minha vida. 
Não importava que tivesse morrido há muito tempo. 
Suas palavras fizeram o que ninguém mais conseguiu: me deram força para superar as muitas dificuldades da vida. 
Ele sempre soube como me fazer rir quando, em volta, tudo parecia um pesadelo. Ele me trouxe paz em momentos de raiva.

A carta ’Quando você se casar’ me intrigou muito. Mas não tanto como a que dizia: ’Quando você for pai’.

Agora você entende o que é o amor verdadeiro, filho. O amor verdadeiro é isso que você sente por essa pequena criatura que está ao seu lado. Não sei se é um menino ou uma menina.
Então… aproveite! O tempo começa a passar cada vez mais rápido. Acompanhe tudo de perto. Não deixe passar os momentos importantes porque eles não voltam. Troque fraldas, dê banhos, seja um exemplo a seguir. Acho que você tem tudo para ser um bom pai, como eu fui.

A carta mais difícil que eu li em toda a minha vida, e também a mais curta, foi do meu pai. 
Tenho certeza que, quando ele escreveu essas quatro palavras, ele estava sofrendo o mesmo que eu. 
Demorei, mas finalmente abri o envelope: ’Quando a sua mãe morrer’.
Agora ela é minha.
Que curioso!… Foi a única carta que não me fez sorrir.

Sempre cumpri a minha promessa, por isso nunca li as cartas antes do tempo. Bom, a exceção foi com a carta ’Se você perceber que é gay’.
O que eu posso te falar? Ainda bem que estou morto!
Brincadeiras à parte, um pouco antes de morrer eu entendi que nos preocupamos com coisas que não têm importância. Você acha que isso muda alguma coisa, filho?
Não seja bobo. Seja feliz!

Sempre esperei com ansiedade o momento seguinte, a próxima carta, outra lição de meu pai. É incrível o que um homem de 27 anos pode ensinar a um velho como eu, de 85 anos.

Agora, deitado numa cama de hospital, com tubos no nariz e na garganta por causa deste maldito câncer, toco suavemente com os dedos o papel descolorido da última carta que ainda não foi aberta. 
Na minha frente, a frase: ’Quando chegar a sua hora’.
Não quero abrir. Tenho medo. Não quero pensar que a minha hora está próxima. Ninguém pensa que vai morrer um dia.
Respiro fundo e abro o envelope.

Oi, meu filho. Espero que você esteja bem velho.
Sabia que essa foi a primeira carta que eu escrevi? Foi a mais difícil de todas. É uma carta que me livrou da dor que foi te perder. 
Acho que a nossa mente acorda quando sente que o fim está perto.
Estes últimos dias pensei muito na minha vida. Foi curta, mas muito feliz. Fui o seu pai e o marido da sua mãe. O que mais eu poderia pedir? Isso me traz uma paz enorme. Agora, faça você o mesmo.
Meu único conselho: não tenha medo.
P.S: Tenho muita saudade…

Extraído do site medium.com

https://medium.com/life-tips/when-i-m-gone-f1611ceb759f#.c7bq6ooa1Translated from original by Rafael Zoehler.

Translated from original by Rafael Zoehler.

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