“Ninguém acredita na morte até que ela aconteça no meio da sua vida, pescando uma pessoa de sua preferência.
Nosso hábito é não levá-la a sério por superstição protetiva.
Pensar na morte é morrer um pouco junto, é ser contaminado por ela.
Em nossos relacionamentos, não conversamos sobre o fim, evitamos falar de heranças ou seguros, espantamos pressentimentos fúnebres, batemos três vezes na madeira.
Só a vida interessa, num esforço positivo de não apressar fatalidades.
Então, guardamos a sensação de que ela não existe, de que não é real.
Na maior parte de nosso percurso, refere-se a uma possibilidade que apenas se realiza com os outros, não em nossa família.
É até certo momento um medo racional e intelectual sem efeitos práticos.
O adiamento do assunto, o boicote de natureza infantil de não esperar o pior, de viver inconsciente de nossos limites, aumenta o choque.
Desnaturaliza a sua aparição.
“Também é por essa confusão que muitas vezes, em nossos tempos obcecados pela eternidade juvenil, os idosos são tão mal tolerados, considerados agourentos pela sua proximidade com o fim”, é
o que alerta a psicanalista Diana Corso.
Quando a morte vem, nossos olhos mudam. A intuição nasce.
A intuição nasce quando alguém próximo morre.
Quem enfrenta uma experiência traumática de perda não olha para o mundo e para si da mesma forma.
“Viramos a esquina”, para usar uma cara expressão do psicanalista Mário Corso.
Emerge uma hipersensibilidade para o escuro, para as sombras.
É como se pudéssemos vislumbrar a estrada mais adiante, além do trecho que estamos palmilhando. Abrem-se as curvas do destino.
É como se pudéssemos pegar objetos com a luz apagada.
Em Harry Potter e a Ordem da Fênix, há um animal que somente é testemunhado por aqueles que entraram em contato com a morte.
Todos que nunca presenciaram um desenlace não são aptos a enxergar.
O Testrálio, espécie de cavalo alado, puxa uma carruagem.
Os analfabetos da morte identificam a carruagem andando sozinha.
Já os que guardaram um laço afetivo com o falecimento captam inteiramente o trote vigoroso do
bicho de corpo esquelético, brilhoso e olhos arregalados.
A metáfora ilumina essa transição.
Um cavalo alado não pode ser alardeado, sob o risco de quem o vê ser chamado de louco.
Por isso, a experiência da morte é tão pessoal e difícil de ser descrita.
As fronteiras entre o interior e o exterior, entre a aparência e a transcendência, são removidas.
Você se transforma num desajustado do discurso dominante.
Como se estivesse alucinando de olhos abertos.
Assume um estado de espírito livre da onipotência.
Vive fora da idealização.
O que prevalece é ser intenso e possível diante da precariedade e da provisoriedade dos dias.
Tem a certeza de que vai morrer e não ignora mais o aviso.
A fragilidade reforça a exaltação da sinceridade emocional contra o engano de falsos prazos.
Descortina-se uma visão do invisível.
É o poder da imaginação que nos torna realistas.
Quando sabemos que não sabemos tudo, reconhecemos o imponderável, incontrolável, alheio à nossa vontade.
Os que avistam o Testrálio perdem curiosamente o medo de morrer.
Adaptam-se à velocidade das asas.
Buscam correr e voar com o que deixaram para trás na imobilidade da eternidade (expressa em frases
acomodadas como “tenho toda a vida pela frente”).
Empreendem o seu tempo para realizar o que sempre adiaram: perdoar mágoas antigas, reconciliar-se gradativamente com as suas lembranças mais felizes, fazer viagens e projetos engavetados.
A despedida de um amor e de um afeto dá início a nossa própria despedida.
Depois é nunca."
Fabrício Carpinejar
(Extraído do livro “Depois é nunca”, de Fabrício Carpinejar. Editora Bertrand Brasil)
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