16 abril 2022



“Ninguém acredita na morte até que ela aconteça no meio da sua vida, pescando uma pessoa de sua preferência. 

Nosso hábito é não levá-la a sério por superstição protetiva. 

Pensar na morte é morrer um pouco junto, é ser contaminado por ela.

Em nossos relacionamentos, não conversamos sobre o fim, evitamos falar de heranças ou seguros, espantamos pressentimentos fúnebres, batemos três vezes na madeira. 

Só a vida interessa, num esforço positivo de não apressar fatalidades.

Então, guardamos a sensação de que ela não existe, de que não é real. 

Na maior parte de nosso percurso, refere-se a uma possibilidade que apenas se realiza com os outros, não em nossa família. 

É até certo momento um medo racional e intelectual sem efeitos práticos.

O adiamento do assunto, o boicote de natureza infantil de não esperar o pior, de viver inconsciente de nossos limites, aumenta o choque.

Desnaturaliza a sua aparição.

“Também é por essa confusão que muitas vezes, em nossos tempos obcecados pela eternidade juvenil, os idosos são tão mal tolerados, considerados agourentos pela sua proximidade com o fim”, é

o que alerta a psicanalista Diana Corso.

Quando a morte vem, nossos olhos mudam. A intuição nasce. 

A intuição nasce quando alguém próximo morre.

Quem enfrenta uma experiência traumática de perda não olha para o mundo e para si da mesma forma. 

“Viramos a esquina”, para usar uma cara expressão do psicanalista Mário Corso.

Emerge uma hipersensibilidade para o escuro, para as sombras. 

É como se pudéssemos vislumbrar a estrada mais adiante, além do trecho que estamos palmilhando. Abrem-se as curvas do destino. 

É como se pudéssemos pegar objetos com a luz apagada.

Em Harry Potter e a Ordem da Fênix, há um animal que somente é testemunhado por aqueles que entraram em contato com a morte. 

Todos que nunca presenciaram um desenlace não são aptos a enxergar.

O Testrálio, espécie de cavalo alado, puxa uma carruagem. 

Os analfabetos da morte identificam a carruagem andando sozinha. 

Já os que guardaram um laço afetivo com o falecimento captam inteiramente o trote vigoroso do

bicho de corpo esquelético, brilhoso e olhos arregalados.

A metáfora ilumina essa transição. 

Um cavalo alado não pode ser alardeado, sob o risco de quem o vê ser chamado de louco.

Por isso, a experiência da morte é tão pessoal e difícil de ser descrita. 

As fronteiras entre o interior e o exterior, entre a aparência e a transcendência, são removidas.

Você se transforma num desajustado do discurso dominante. 

Como se estivesse alucinando de olhos abertos.

Assume um estado de espírito livre da onipotência. 

Vive fora da idealização. 

O que prevalece é ser intenso e possível diante da precariedade e da provisoriedade dos dias. 

Tem a certeza de que vai morrer e não ignora mais o aviso. 

A fragilidade reforça a exaltação da sinceridade emocional contra o engano de falsos prazos.

Descortina-se uma visão do invisível. 

É o poder da imaginação que nos torna realistas. 

Quando sabemos que não sabemos tudo, reconhecemos o imponderável, incontrolável, alheio à nossa vontade.

Os que avistam o Testrálio perdem curiosamente o medo de morrer.

Adaptam-se à velocidade das asas. 

Buscam correr e voar com o que deixaram para trás na imobilidade da eternidade (expressa em frases

acomodadas como “tenho toda a vida pela frente”). 

Empreendem o seu tempo para realizar o que sempre adiaram: perdoar mágoas antigas, reconciliar-se gradativamente com as suas lembranças mais felizes, fazer viagens e projetos engavetados.

A despedida de um amor e de um afeto dá início a nossa própria despedida. 

Depois é nunca."



Fabrício Carpinejar



(Extraído do livro “Depois é nunca”, de Fabrício Carpinejar. Editora Bertrand Brasil)



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