27 agosto 2022



“A morte não nos desliga de pai e mãe. 

Meu amigo Zé guarda até hoje uma garrafa de água pela metade na geladeira, gargalo do último brinde de seu pai ao falecer, há mais de quinze anos. 

Ninguém tem ideia do que significa aquilo: não acabou, nunca vai acabar. 

A relação jamais se encerrará entre eles. A garrafinha estará sempre com vida para ser bebida.

O que é despedida senão se esforçar mais para estar presente, para lembrar, para fazer o que se prometeu. 

Temos que trabalhar mais a memória, os ouvidos, a atenção, incorporando alguém em nossas decisões. 

As conversas não serão mais fáceis, fartas, abundantes, mas não deixarão de acontecer. 

Não se terá o direito de abraçar, mas sentirá o abraço pelo arrepio, reconhecendo a assinatura do toque com a pele aquecida e estremecida de repente. 

Não se assuste, nem duvide da veracidade do encontro, você saberá quem é sentindo. 

Sentir é tudo depois da morte. 

Não dependerá de confirmações, de avisos, de sinais. 

Será a única testemunha de um milagre. Assim como respiramos os temperos de uma horta ou de uma refeição mesmo muito distantes. 

Você não pode mais olhar a sua mãe, mas seguirá sendo permanentemente cuidada. E cuidará dela se cuidando. 

Não é porque ela morreu que ela não escutará mais os seus apelos. 

Não é porque ela morreu que não receberá mais colo. 

Continuará sendo socorrida, acolhida, compreendida. 

Experimentará uma lucidez dentro da dor que jamais conheceu antes. 

Quando uma pessoa importante vai embora não é o fim, é apenas acostumar-se a amar de um novo jeito. 

Não é uma ruptura, é a manifestação mais contundente de uma ligação atemporal. 

Vem como uma segunda gestação. 

Agora é a mãe que está no ventre da filha, chutando, mexendo-se quando necessário, respondendo ao timbre com a confiança de quem conhece de cor aquele corpo.” 


Fabrício Carpinejar



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