28 agosto 2022

O sentido da Vida - Fabrício Carpinejar

 


Há três anos, meu sogro não fala, não escreve, não anda. Foi vítima de uma parada cardíaca.

Pintor, advogado, escritor, ele era um poço de vitalidade. Nadava, corria, regrava os seus hábitos alimentares.

Agora, aos 86 anos, não há noção garantida do que ele entende, do quanto entende. A comunicação é feita pelos olhares, pelos risos, pelos esgares, pelos toques, pelos sinais. Não temos certeza do que passa pelo seu cérebro, só pelo seu coração. O coração fica mais visível com a debilidade.

Minha esposa Beatriz, filha única, já sem a mãe por aqui, é a sua responsável. Levou Jair para pescar em sua cadeira de rodas para comemorar o Dia dos Pais. Lembrou que ele fazia excursões com o seu amigo Capitão no interior de Minas, nos serões da amizade.

Como mineiro não tem mar – o único sal umedecido com que convive é o da sua lágrima –, acaba se aproximando da água doce como se fosse extensão de seu sangue. Rios, córregos, cachoeiras são parte da sua cartografia pessoal.

Não conheço mineiro que não seja bom pescador – já ganha o peixe de saída pelo seu silêncio veterano, profundo e longo.

 

Beatriz fardou o seu pai de boné e regata, alcançou uma vara para ele, ajeitou a roldana em suas mãos, explicou o que ele deveria fazer. Ele meneou a cabeça concordando. É evidente que ela tinha como único objetivo distraí-lo, aquecer as lembranças, aumentar um cadinho o seu gosto de viver.

Mas, estranhamente, Jair firmou os seus braços para o horizonte, reencontrou a memória muscular em algum canto da sua alma e respondeu ao coice do lago. Não cedeu o anzol à força adversa, não se deixou levar. Foi puxando a linha com heroísmo e fisgou um peixe grande, uma tilápia gorda, trazendo-a para o seu colo. Sua gargalhada diante da proeza renovava o seu pertencimento ao mundo.

Sua filha não acreditou, apenas batia palmas, fervorosos aplausos, numa cabana de abraços em cima de seu pai.

Tal como menina diante de um show de mágica, nem pretendia recorrer à lógica.

Jair sentiu compaixão do peixe se contorcendo nas piruetas por respirar, lembrou-se de si, da sua fragilidade, e o devolveu cerimoniosamente para o leito.

 

Qual é o sentido da vida?

O sentido da vida é como pescar. Exatamente o que o meu sogro fez.

Você não pode se valer pelo resultado.

 

O sentido da vida é o ritual. É você estar no barco, você ouvir o vento, você entender

o humor e o temperamento das águas, você se tranquilizar com o balanço, e não depender de uma recompensa ou necessidade de expor que você viveu isso.

 

Se for unicamente pelo peixe, você desperdiçará o significado secreto e especial do momento. As pessoas são infelizes porque elas têm que provar o que viveram. Quando você não precisa mais provar, é que você está realmente vivendo.

 

Você volta e não precisa mostrar o peixe, mas se sente feliz pela pescaria. Pelo tempo que você teve junto ao rio, pelo tempo que você teve junto à embarcação, pelo tempo que você teve junto à natureza, pelo tempo que você teve junto a si mesmo. E não tem fotos, não tem evidência nenhuma, e você sabe que viveu.

 

Nós perdemos a maior parte da nossa rotina procurando nos justificar para os outros.

 

Então, evitamos fazer qualquer coisa sozinhos, porque não temos testemunhos.

 

Somos tão carentes que pensamos: eu gostaria que alguém estivesse aqui para ver que é verdade.

 

Você não é capaz de se contentar com o que aconteceu, com as suas próprias experiências?

 

Os milagres são discretos, anônimos e invisíveis.

 

 

Fabrício Carpinejar



Fonte: 

https://www.otempo.com.br/mobile/opiniao/fabricio-carpinejar/o-sentido-da-vida-1.2718242?fbclid=IwAR0XOnGlExKpbPBBasf8XIxhmPrOXL43YSsRPxqoqEQHJYI2j3Frha2ZxjY

 

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