A Doutrina Espírita é clara no que diz respeito às almas gêmeas.
Não existem metades que precisam se completar para desfrutar a eterna felicidade.
Cada um de nós é uma individualidade que estabelece laços e afinidades com outras individualidades, através dos tempos e das vivencias sucessivas.
Se substituirmos o termo “gêmeo” por “afim”, vamos perceber que são muitas as almas afins que encontramos e reencontramos por esse mundão de meu Deus, e que todas elas, cada uma seu modo, têm seu espaço e importância em nossa caminhada.
Podemos dizer então que são várias as nossas “almas gêmeas”. Amigos, filhos, irmãos, pais, mães, maridos e esposas, entre outros, formam a imensa fileira das relações de afinidade construídas vidas afora.
Porém, apesar da clareza dos ensinamentos espíritas, ainda vemos muita gente boa, dentro do nosso movimento, cair nessa armadilha emocional, que está mais para conto do vigário que para conto de fadas, e pode gerar graves conseqüências, não só na vida pessoal, como também no núcleo espírita em que trabalham.
Temos presenciado histórias preocupantes.
Aqui, são aqueles dois médiuns, ambos casados com outros parceiros, que se descobrem “almas gêmeas”.
E aí, tentam se enganar que estão “renunciando”... Mantém-se em seus casamentos, mas tornam-se “irmãos siameses” na Casa Espírita. Sentam-se lado a lado nas reuniões, são vistos juntos em todos os lugares, dão sempre um jeitinho de fazer parte da mesma equipe (isso quando não arranjam uma missão que “a espiritualidade designou somente aos dois”) e se isolam pelos cantos em conversas particulares sem fim. Só tem olhos um para o outro e, em tal enlevo, não se dão conta que à sua volta todos sentem o que está acontecendo, sobretudo seus maridos e esposas, humilhados publicamente no melhor estilo adultério por pensamento e intenção, embora sob a máscara do amor fraternal.
Sim, porque o fato de não partirem para o ato sexual não os exime do abandono afetivo e da traição emocional em relação aos cônjuges.
Acolá, é aquela irmã solitária e carente, que se depara com o eloqüente e carismático orador. Que palestra!... Que palestrante!... Que homem! Ele só tem um defeito: É casado!... E logo com aquela senhorinha já envelhecida e meio sem graça... Que desperdício!...
E eis que de repente ele também a vê na platéia... Bonitona, elegante, jovial e olhando-o com aquele olhar de admiração apaixonada que há muito ele não percebe na companheira... Afinal, o casamento - como todos após lá seus trinta anos - já entrou na rotina. Oh céus! Ali mesmo cupido dispara a flecha e zás!... Começam as justificativas íntimas: “Como não tinham se descoberto antes?!... Por certo eram almas gêmeas que há muito se procuravam... O casamento foi um equívoco; o reencontro uma programação para que pudessem trabalhar juntos para Jesus.” Resolvem então assumir o romance. A mulher dele, abandonada após anos de companheirismo e convivência, entra em profunda depressão, os filhos se revoltam, a família se desestrutura, os companheiros se retraem, decepcionados e temerosos... “Ora, quem tem suas mulheres e maridos que se cuide, pois se aconteceu com o fulano, que era um exemplo, ninguém está livre”...
Instala-se então o tititi e a desconfiança.
Daí para o escândalo é apenas um passo, e para o afastamento constrangido dos próprios envolvidos, sua família e outros tantos trabalhadores desencantados com a situação, é um pulo. Sofrimento, deserção e descredibilidade.
Tudo pelo direito ao “felizes para sempre” junto à sua “metade da laranja”...
Mas, onde é que está escrito, no Evangelho, que é possível construir felicidade sobre os escombros da felicidade alheia ou edificar relacionamentos duradouros em alicerces de leviandade e egoísmo?
Temos visto estrondosos equívocos desse tipo mexer seriamente com estruturas de famílias e casas espíritas, fazendo ruir instituições e relações que pareciam extremamente sólidas.
Temos visto companheiros valorosos das nossas fileiras, que caminhando distraídos de que “muito se pedirá àquele que muito tiver recebido”, de repente resolvem jogar para o alto o patrimônio espiritual de uma vida inteira, em nome do “amor”.
E assim, cônjuges dedicados e dignos são descartados como se não tivessem alma nem sentimentos, em detrimento de aventuras justificadas por argumentos inconsistentes, sem nenhum respaldo ético/moral ou espiritual.
Isto quando ainda há um mínimo de honestidade e se pede a separação, porque alguns preferem continuar comodamente em seus relacionamentos “provacionais”, porém mantendo, na clandestinidade, um “afair” paralelo com a tal “metade eterna”, sob a desculpa esfarrapada de que a família deve ser poupada, pois “família é sagrado!”.
Logo se faz sentir o efeito dominó.
Lá adiante, após vários corações feridos e muitas quedas morais, a convivência faz a alma gêmea virar “alma algemada”.
As desilusões chegam, inevitáveis, com todo o peso resultante das atitudes ditadas pelas paixões, mas na maioria das vezes, já é tarde pra retomar, ainda nesta existência, o percurso abandonado.
Reflitamos. Ninguém chega atrasado na vida de ninguém. Se chegou depois é porque não era para ser. E se não era para ser há um bom motivo para isso, visto que as Leis Divinas são indiscutivelmente sábias, justas e providenciais. Não tem para onde fugir: Quando o teste nos procura, ou somos aprovados ou forçosamente teremos que repetir a lição futuramente, e em condições bem mais adversas...
Podemos reencontrar, no grupo de trabalho espírita, grandes amores e paixões do passado que nos reacendem sentimentos e sensações maravilhosas? Sim.
Podemos olhar para companheiros de ideal espírita com outros olhos que não sejam os do amor fraternal? Sim. Nada mais natural.
Mas sabemos, pelo Apóstolo Paulo, que poder nem sempre significa dever...
Portanto, o bom-senso nos diz que investir ou não afetivamente nessas pessoas, vai depender de que ambos estejam livres para fazê-lo.
Alguém haverá de argumentar que casamento não é prisão e que aliança não é corrente; que ninguém está preso a ninguém “até que a morte os separe” e que o próprio Cristo admitiu a dissolução do casamento.
Porém, o espírita não desconhece que, na maioria dos casos, muito além dos compromissos cartoriais existem profundos compromissos e dívidas emocionais entre aqueles que se escolheram como marido e mulher nesta vida.
Compromissos muito sérios para serem dissolvidos porque o corpo requer sensações novas, porque a mulher envelheceu, perdeu o brilho ou porque o marido ficou rabugento... Como se o outro estivesse só quebrando um galho enquanto a “outra metade” não chegava...
Todos almejamos felicidade, e no estágio evolutivo em que nos encontramos, isso ainda tem muito a ver com realização afetiva.
Por isso mesmo, não devemos ignorar que só a quitação de antigos débitos emocionais é que nos facultarão essa conquista.
Precisamos interiorizar, de uma vez por todas, que os casamentos por afinidade ainda são raros neste momento planetário, e que se ainda não conseguimos amar o parceiro que nos coloca em cheque ou aquele que não corresponde aos nossos anseios, o conhecimento das leis morais exige que ao menos nos conduzamos com um mínimo de retidão e tolerância diante deles.
Tal consciência nos exige também, caso nos sintamos atraídos por companheiros já comprometidos, que nos recusemos terminantemente, sob qualquer pretexto, a desempenhar o deprimente e desrespeitoso papel da terceira pessoa numa relação, pois não há conversa fiada de alma gêmea que dê jeito no rombo emocional aberto pela desonestidade afetiva, nem justificativa de carência e solidão que nos permita desviar da rota do dever sem que tenhamos, forçosamente, que colher amargos frutos, porque “se o plantio é livre, a colheita é obrigatória”.
Não se colhe rosas plantando espinhos.
Sejamos responsáveis diante daqueles que escolhemos e que nos escolheram para compartilhar a vida. Acautelemo-nos contra as ilusões. Se os nossos anseios são irrealizáveis por agora, respeitemos as limitações impostas pelo momento que passa.
Por mais que possa doer olhar de longe um dos muitos seres amados, que cruza o nosso caminho nesta vida, mas que já optou por outra pessoa, só a dignidade de nos manter à distância é que vai possibilitar, pelas justas leis da vida, que conquistemos por mérito, lá na frente, em outras circunstancias, a alegria do reencontro e a partilha do afeto junto àquele que nos é tão caro, porque estaremos redimidos dos ônus afetivos do ontem através das atitudes renovadas do hoje.
“Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça, e tudo o mais vos será acrescentado” (Mateus 6.33)
Saibamos buscar... Saibamos esperar... Trabalhemos por merecer... Afinal, temos pela frente a eternidade!
(Joana Abranches)
Fonte: Jornal dos Espíritos
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