15 abril 2012

Dica de livro: "As intermitências da morte", de José Saramago


De repente, a morte suspendeu suas atividades no país.

A nação se embandeirou: tinha sido escolhida para a imortalidade, depois de milênios de sofrimento e sujeição à "indesejada das gentes".

Ano Novo, vida eterna, porque desde 1º de janeiro ninguém mais morria nesse estranho canto do mundo inventado por José Saramago em “As intermitências da morte” - uma fábula sobre os caprichos da figura macabra e ossuda que segura os fios da vida de cada um.

Ela pode ser fatal, mas também tem seus sentimentos.

Magoada porque os seres humanos tanto a detestam, a morte resolve mostrar como, no fundo, eles são uns ingratos.

A falta de falecimentos logo se revela um problema, e não só para as agências funerárias. 

Os hospitais ficam lotados de pacientes agonizantes impedidos de "passar desta para melhor". E os idosos avançam na decrepitude sem esperança de descanso (nem para eles, nem para as suas famílias).

O primeiro-ministro teme uma crise, o cardeal antevê o pior: "sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja".

Uma organização secreta - a “máphia” – que surge para tirar proveito.

E em poucas páginas o autor expõe todos os vínculos que, normalmente, ligam a morte ao Estado, às religiões e ao cotidiano.

Mas até quando poderia durar essa espécie de greve? Quando seria afinal devolvido "o supremo medo ao coração dos homens"? E em que condições?

Um romance que trata da vida, com humor e ironia.

Abaixo um pequeno trecho do livro.


* * *


No dia seguinte ninguém morreu.

O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada.

Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.

A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o habitual e calamitoso regueiro de óbitos, como se a velha átropos da dentuça arreganhada tivesse resolvido embainhar a tesoura por um dia.

Sangue, porém, houve-o, e não pouco.

Desvairados, confusos, aflitos, dominando a custo as náuseas, os bombeiros extraíam da amálgama dos destroços míseros corpos humanos que, de acordo com a lógica matemática das colisões, deveriam estar mortos e bem mortos, mas que, apesar da gravidade dos ferimentos e dos traumatismos sofridos, se mantinham vivos e assim eram transportados aos hospitais,ao som das dilacerantes sereias das ambulâncias.

Nenhuma dessas pessoas morreria no caminho e todas iriam desmentir os mais pessimistas prognósticos médicos [...]


("As intermitências da morte", de José Saramago - Ed. Companhia das Letras)

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