Vivia, num país distante e de céu cor de anil, um povo pobre
e feliz, que na sua pobreza tinha tempo e gosto para cantar, brincar, fazer
versos, e experimentar com aquelas artes e aquelas ciências que faziam alegres
o seu coração.
Felizes também eram o rei e a rainha, amigos de todos e que
esperavam, para sua felicidade, o nascimento de uma criança.
Nasceu uma menina
linda, mansa e fofa.
E para que nada lhe acontecesse, convidaram como madrinhas
e padrinhos do batizado todas as fadas e magos do reino, que com os seus
encantamentos haveriam de envolver a criança com um círculo mágico protetor.
Ignoravam, é claro, a bruxa malvada que vivia na floresta negra.
Quando ela soube, pela leitura das colunas sociais, que
havia sido desprezada, teve um acesso de cólera e jurou vingança.
Mandou ao
palácio seus corvos espiões: que verificassem se havia algum ponto vulnerável
nos encantamentos que protegiam a princesinha.
Voltaram desapontados: "o corpo da princesa está
fechado. Nada sério pode ser feito. Só existe um lugarzinho. Esqueceram-se do
dedo 'seu vizinho', da mão esquerda...''
A bruxa deu uma gargalhada: "Mais
que suficiente. Jogarei uma praga que fará com que o rei e a rainha se
arrependam para o resto de suas vidas. Aquele dedinho vai engrossar, engrossar,
engrossar. E não haverá remédio que cure..."
E assim foi. E a malvada ainda mandou dizer, por mensagem no
bico de seus corvos-correio.
O rei e a rainha foram tomados de grande aflição. Chamaram fadas e magos. Inutilmente. Bruxedo
não se desfaz. Vieram médicos, cirurgiões plásticos, invocaram homeopatia,
fizeram compressas de confrei, apelaram para o poder das pirâmides e a
meditação transcendental.
Em vão.
Pobre princesinha. Seu dedinho virou dedão, grotesco
e vermelhão.
Não podia usar aquelas lindas luvas brancas. E nem os anéis reais.
Também não podia tocar piano, violino ou violão. O dedão esbarrava e a nota
desafinava. Chocava a pobre princesinha, inconsolável pelo seu "seu
vizinho"... Quem queria se casar com uma jovem de dedo grosso?
O rei, desesperado, chamou seus sábios e pediu conselho.
Foi
então que um deles fez sensata ponderação! "Alteza, se não é possível
fazer com que o dedo da princesinha fique igual aos dedos dos outros, é
possível fazer os dedos dos outros ficarem iguais ao dedo da princesinha. Ao
final, o resultado será o mesmo. Ninguém terá vergonha".
O rei ficou encantado. E logo chamou os técnicos que foram
encarregados de viabilizar a solução.
O que se decidiu foi o seguinte: o rei
promoverá, anualmente, um baile para qual todos os jovens do reino estão
convidados. Infelizmente, nem todos poderão ser admitidos porque só há lugar
para mil pares no salão de festas.
Muitos serão chamados, poucos os escolhidos. Mas estes serão
regiamente recompensados: empregos públicos vitalícios.
E um, dentre estes, será escolhido pela princesa, como
marido, futuro rei.
O critério de admissão? Os mil que, dentre todos, tiverem
os dedos mais grossos "seu vizinho" da mão esquerda.
Pra que haja
justiça, sem fraude, se colocarão orifícios eletrônicos no vestíbulo do
palácio. Os moços enfiarão seus dedos, o computador dirá quantos pontos
fizeram, se passaram ou não.
E assim se fez.
Os arautos anunciavam a boa-nova. De repente o reino mudou.
Todos compreenderam que o futuro passava pelos exames vestibulares e só havia
uma única coisa que importava: a grossura do "seu vizinho" da mão
esquerda.
Cessou a antiga alegria inconseqüente e descontraída. Os
pais deixaram de prestar atenção nos risos para prestar atenção no dedo. E se
gabavam: "menino de futuro promissor; veja só seu dedo, tão jovem, tão
gordo..."
As escolas passaram por revoluções.
Os estabelecimentos
antiquados, preocupados com sorrisos, viram-se repentinamente sem alunos.
"Alegria não engrossa dedo", diziam os pais, categóricos, ao pagar
sua última prestação.
E as que progrediam eram aquelas que desde cedo
introduziam as crianças na filosofia do dedo grosso.
Música, literatura,
brinquedos, as artes e as ciências a que davam prazer foram todas aposentadas.
O que importava era passar no vestibular e, no vestibular, só contava a
grossura do dedo.
E foi assim que se criou uma nova filosofia da educação, e
coisas novas, cursinhos que viam tudo pelo ângulo e segundo o objetivo de
engrossar os dedos.
Os preços eram exorbitantes. Os pais trabalhavam horas
extras, as viúvas lavavam mais roupas: "Pai não mede sacrifício para o bem do seu filho..."
E à noite rezavam: "Oh, Deus, ajuda o meu filho para que ele ten disciplina e se aplique para que o seu dedo engrosse..."
Mas, ano vai, ano vem, a mesma coisa acontecia. Só mil
entravam.
Os que ficavam de fora se punham a olhar para seus dedos
grossos, aquele era o resultado de anos de disciplina e privações. Será que
adiantou? E pensavam nas coisas perdidas, nunca mais. Dedo grosso, inútil,
gordo de abstenções e sacrifícios. As coisas que davam prazer haviam sido
abandonadas e, agora, estavam sem o baile e sem o prazer. A suspeita era de que
haviam sido vítimas de uma grande burla ...
A cada ano que passava, aumentava o número de jovens
tristes.
Nunca entrariam no baile. E o pior: estavam aleijados.
O mundo
se havia transformado num gigantesco dedo grosso.
Era como se um pedaço da vida
lhes tivesse sido roubado, irremediavelmente. O passado não se recupera.
Por
todo o País, a nuvem de tristeza. Os técnicos sugeriam que, talvez, com
técnicas mais eficientes, a qualidade do ensino pudesse ser melhorada. Dedos
mais grossos, talvez ...
O único problema é que o tamanho do salão de bailes
continuava o mesmo.
Lá dentro a situação não era melhor. A princesinha não se
decidia sobre o seu eleito: “Pai, eles são tão chatos. Só sabem falar sobre
dedos grossos. Preferiria um moço de dedo fino, mas que fosse alegre e pudesse
me alegrar...”
O rei compreendeu, repentinamente, o tamanho de sua
estupidez.
Às vezes, o amor é cego e burro.
Mandou seus arautos de novo, país afora, dizendo que dali
para frente ninguém mais seria julgado pela grossura do dedo. O que importaria
seria a alegria de viver.
E então, como que por encanto, o País acordou do seu
feitiço.
Ninguém mais procurava os cursinhos engrossa-dedo, que tiveram
de fechar suas portas.
Os pais mudaram suas orações, pediam a Deus que fizessem
alegres os seus filhos, pararam de fiscalizar os seus dedos
"seu-vizinho", e iam às escolas para saber das coisas belas e
gostosas que ali se faziam.
Os poemas voltaram a ser lidos, os moços brincavam com suas
flautas e violões sem dores de consciência, e das Ciências e Artes eles se
dedicavam àquelas que lhes davam prazer.
O salão de festas continuou do mesmo tamanho. Mas sua sombra
sinistra já não mais enfeitiçava os anos da juventude.
Mesmo os que ficavam de fora continuavam a sorrir, porque
sabiam que tinha valido a pena. O mundo ficara mais belo. O tempo não tinha
sido perdido. O passado não tinha sido inútil.
E o rei, olhando para a princesinha, feliz, cantarolava que
o que importa é que cada um "da alegria seja um aprendiz".
E os moços tomavam seus instrumentos e dedilhavam as cordas.
E não havia dedos gordos que atrapalhassem.
(Rubem Alves)
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