Uma história de senilidade e loucura.
As mudanças de personalidade, a depressão, as monomanias, a
paranóia psicótica, o medo, as alucinações.
Como lidar com alguém que está sendo afetado de forma
inexorável pelo mal de Alzheimer?
E pior – o que fazer quando esse alguém é sua mãe?
Em "O lugar escuro", Heloisa Seixas narra uma história real, a
sua própria, entrelaçada com um pesadelo familiar.
Todas as fases da lenta degradação de uma mente comprometida
são descritas de forma minuciosa e assustadora neste livro que, de tão
fantástico, às vezes parece ficção, ou "uma espiral assombrada", como
define a escritora.
Mas quem já conviveu com pessoas afetadas pelo mal de
Alzheimer sabe que a realidade é assim – uma sucessão de memórias perdidas, um
vazio que vai tomando tudo, uma realidade fugidia, em que o doente se
transforma no avesso de si mesmo.
Como quem procura pistas para sair de um labirinto, Heloisa
Seixas reproduz essa trajetória, que nos assusta e atrai, com sua dose diária
de estranhamento e loucura.
Das raízes familiares, num casarão da Bahia, à vida no Rio
dos anos dourados, Heloisa faz uma viagem ao passado de sua mãe, esquadrinhando
a mente que aos poucos se estilhaça.
O lugar escuro é um relato corajoso – narrativa catártica
que tem o poder de emocionar, e também de aproximar o leitor desse cotidiano
que massacra um número cada vez maior de pessoas e que é a principal causa de
demência entre idosos no Brasil e no mundo.
Segundo dados da Academia Brasileira de Neurologia, com o
crescimento da população com mais de 60 anos no país – que deve chegar a 24
milhões de pessoas daqui a dez anos – o mal de Alzheimer deve se tornar um
problema de saúde pública. Hoje, no mundo, já se contabilizam mais de 20
milhões de casos da doença.
*
Abaixo, um pequeno
trecho do livro - que teve inclusive uma peça teatral adaptada, falando de relações familiares a partir da doença de Alzheimer .
*
Foi no dia em que
minha filha saiu de casa que minha mãe enlouqueceu.
Não foi gradual, era
um sábado.
Exatamente naquele dia,
minha filha completava 22 anos. Sábado, 16 de fevereiro de 2002, oito horas da manhã.
Talvez eu não pudesse
precisar o momento se não fosse o aniversário, a mudança — mas foi como aconteceu.
Minha
mãe enlouqueceu num sábado de manhã.
Morávamos juntas, as
três. Minha mãe com 79 anos, eu com 49,
minha filha com 22. Mamãe passara uma semana
viajando, em uma dessas excursões de terceira idade, em Caxambu.
Chegara na véspera.
Tínhamos acordado bem cedo, minha filha e eu, para esperar o caminhão da mudança e estávamos
na sala, conversando, quando mamãe apareceu.
Toda arrumada, a roupa
impecável — sempre fora vaidosa —, a calça bege, a blusa estampada, o colar de
marfim, tudo combinando. Os cabelos bem
penteados, um pouco de pó
de arroz nas faces,
batom.
Sorriu ao nos ver. Notei que usava seu melhor
par de óculos, um de aro irisado, parecendo madrepérola, trazendo
incrustadas nos cantos superiores duas
pedrinhas de strass, como pontinhos de luz.
Jamais usava aqueles óculos a não ser quando ia sair
para algum lugar importante.
— Aonde você vai,
mamãe?
Ela me olhou, ainda sorrindo,
mas trazendo na testa os vincos que denotavam um começo de impaciência.
— Vou descer para
tomar café, claro.
O silêncio que se seguiu
àquela frase foi imenso, de uma tal densidade que era como se o universo fosse outra vez
a bolinha de golfe que, dizem, era sua dimensão antes do big bang.
Não sei quantos
segundos se passaram.
Sei que eu e minha filha nos entreolhamos. E se
esse momento de silêncio e perplexidade hoje me parece tão tremendo é porque, enquanto durou, ainda
tivemos o benefício da dúvida.
Mas precisávamos fazer
outra vez a pergunta, a frase absurda pairava no ar. E eu fiz:
— Descer para tomar
café?
— É. Descer para tomar
café!
E então entendi tudo. Quando estamos hospedados num hotel, acordamos, mudamos de roupa e descemos para tomar
café.
Depois de uma semana em Caxambu, minha mãe pensava
que ainda estava no
hotel.
Naquele instante, com
uma lucidez imensa, tive a dimensão do que estava acontecendo.
A atitude de minha mãe
era a prova inequívoca de que algo se rompera em sua mente.
Fios microscópicos
chicoteavam soltos no misterioso universo de seus neurônios.
Um salto fora dado.
Editora Objetiva.
* * *
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