Um dos meus livros
prediletos é "Os miseráveis", de Victor Hugo, do século XIX.
Creio que um dos
trabalhos mais apaixonantes da minha vida foi traduzi-lo e adaptá-lo
para jovens.
Uma das passagens mais
marcantes, descrita em detalhes no original, fala do poder da fofoca.
Fantine é mãe solteira e deixou sua filha, a menina Cosette, aos
cuidados de um casal, a certa distância da cidade onde se fixou.
Trabalha como operária
e envia quase tudo o que ganha para o sustento da menina. Só que não
sabe ler e escrever. Recorre a um profissional para redigir suas
cartas e ouvir as respostas. As colegas de trabalho desconfiam.
Para quem tantas
cartas, afinal? Convencem o homem que as escreve não a revelar seu
conteúdo – ele é discreto –, mas a fornecer o endereço para
onde são enviadas.
Uma delas, então, viaja às próprias custas
para apurar a história. Volta com a satisfação de “saber de
tudo”. Conta o que sabe para todas.
Estigmatizada numa
época em que ser mãe solteira era uma desonra, Fantine briga com as
outras. É demitida por moralismo.
Acaba nas ruas como prostituta.
Quem leu o livro, viu algum dos filmes ou versões teatrais
inspirados na obra sabe que ela vende os dentes e cabelos para depois
morrer tragicamente.
Onde começou toda a
sua via-crúcis? Na curiosidade sobre a vida alheia.
A fofoca é a base da
tese da “cura gay”: maléfica, preconceituosa, com o poder de
destruir vidas
Acredito que a fofoca é
maléfica. É fundamentada no preconceito. Tem o poder de destruir
vidas.
Em sua primeira peça
de teatro, em 1934, a escritora americana Lilian Hellman (1905-1984)
aborda o tema.
A peça, "The children’s hour", foi sucesso na
Broadway e ganhou versão cinematográfica com as estrelas da época,
Audrey Hepburn e Shirley MacLaine.
Aqui no Brasil, o filme
ganhou o título de "Infâmia" (procurem, vale a pena ver.)
Narra a
história de duas mulheres, sócias fundadoras de uma escola infantil
nos Estados Unidos. Uma aluna as acusa de ter uma relação
homossexual. Não têm, de fato. Mas a avó da garota espalha a
fofoca na comunidade.
Perdem os alunos,
quebram financeiramente e, finalmente, uma delas se suicida.
Histórias como essa são frequentes.
No mundo artístico,
encontro jovens que deixaram a cidade distante onde viviam, porque
não suportavam mais os falatórios.
Certa vez, em visita à
pequena Bernardino de Campos, interior de São Paulo, onde nasci,
conversei com um rapaz de cabelos pintados de verde, num estilo meio
punk, cuja família se mudara para lá.
Fazia faculdade, mas
queria voltar a São Paulo, onde trabalhava como motorista. Eu me
espantei:
– Prefere o trânsito
de São Paulo a terminar um curso universitário, ter uma carreira?
– Aqui, meu cabelo
virou até notícia na rádio – respondeu ele.
Por que falo sobre tudo
isso?
Sim, sei que a proposta
de “cura gay”, do deputado Marco Feliciano, já foi muito
comentada.
Seria chover no molhado dizer quanto isso nos ridiculariza
internacionalmente, já que a Organização Mundial da Saúde não
classifica a homoafetividade como doença e, portanto, não se trata
de algo a curar.
Mas quero olhar a
questão por outro ângulo.
Todo esse movimento
liderado por Feliciano, entre os evangélicos, e pela deputada Myrian
Rios, como católica carismática, entre outros, não pode ser
confundido com fé. É uma enorme curiosidade pela vida alheia.
Como fofoca
transformada em questão política.
Convivo com esse tipo
de comportamento não é de hoje.
Tenho uma tia que
frequenta a igreja Assembleia de Deus. Nunca corta os cabelos, devido
a uma interpretação do Velho Testamento, em que eles são descritos
como “véu da mulher” – embora nada proíba Feliciano de
depilar as sobrancelhas.
Adolescente, eu morava
em Marília, interior de São Paulo. Uma jovem evangélica da
Assembleia deixou de ser virgem. A fofoca se espalhou no templo. A
moça foi expulsa publicamente da igreja.
Não é o primeiro
preceito cristão acolher os pecadores?
Normatizar a vida dos
fiéis é exercer poder sobre eles. Esse poder é exercido pela
fofoca entre os membros da comunidade religiosa, que passam a
controlar o comportamento uns dos outros.
Trazer esse tema, da
igreja, para a política, é um acinte para a sociedade.
Quanto mais se fala em
“cura gay”, mais cresce o preconceito. E o preconceito estimula a
fofoca, o controle sobre o comportamento alheio.
É um risco para quem
acredita nas liberdades individuais.
Inevitavelmente
surgirão novas vítimas, como a Fantine de Victor Hugo.
(Walcyr Carrasco)
* * *
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