12 outubro 2013

Como o conceito de criança se transformou ao longo dos séculos


Em um tempo relativamente pequeno, o conceito de criança passou por muitas transformações.

Cortezzi Reis, baseando-se na obra do historiador francês Phillippe Ariès, descreveu como o olhar sobre a criança vem transformando-se dentro da sociedade, desde a sociedade medieval, até os dias atuais. [...]

Na sociedade medieval, a criança era vista como uma “coisinha engraçadinha”, porém, sua passagem pela família se dava de maneira muito breve e insignificante.

Contudo, um sentimento superficial da criança - a que chamei "paparicação" era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida, enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha.

As pessoas se divertiam com a criança pequena como com um animalzinho, um macaquinho impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois uma outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato. (ARIÈS, 1985)


A morte de uma criança na época era algo sem importância, pois as famílias tinham muitos filhos.

A partir dos 5 ou 7 anos, a criança era como que um adulto em miniatura, sendo tratada como tal.

Era comum a criança morar em outra casa, com outra família, pois não se dava valor aos laços afetivos.

Observa-se, nessa época e até o fim do séc. XVII, o infanticídio tolerado, mesmo tendo sido um crime severamente punido. 

Era praticado em segredo e como forma de acidente: os pais colocavam a criança para dormir em sua cama e, durante a noite, a criança era asfixiada. 


Foi então que, a partir do séc. XVIII essa prática foi proibida terminantemente pelos bispos, aparecendo assim uma consideração pela vida da criança.

Do século XV ao XVII, o brinquedo infantil e os jogos adultos mesclavam-se, sendo difícil distinguir uns dos outros.

Parece, portanto, que no início do século XVII não existia uma separação tão rigorosa como hoje entre as brincadeiras e os jogos reservados às crianças e as brincadeiras e os jogos dos adultos...

Conhecemos bem suas brincadeiras, pois, a partir do século XV os artistas multiplicaram as representações de criancinhas brincando. 

Reconhecemos nessas pinturas o cavalo de pau, o cata-vento, o pássaro preso por um cordão... e, às vezes, embora mais raramente, bonecas.

Ariès coloca que esses brinquedos eram reservados as crianças, mas que ao mesmo tempo, estudos sugeriam que antes de pertencer aos pequenos, havia pertencido aos adultos, pois haviam nascido da necessidade das crianças de imitar as atitudes dos adultos.


Em 1600 as brincadeiras eram feitas por adultos em cultos religiosos, manifestações coletivas da sociedade. Após um tempo ficaram reservadas às crianças,

O problema da boneca e dos brinquedos-miniaturas leva-nos a hipóteses semelhantes. 

Os historiadores dos brinquedos e os colecionadores de bonecas e de brinquedos-miniaturas sempre tiveram muita dificuldade em distinguir a boneca, brinquedo de criança, de todas as outras imagens e estatuetas que as escavações nos restituem em quantidades semi-industriais e que quase sempre tinham uma significação religiosa: objetos de culto doméstico ou funerário, ex- votos dos devotos de uma peregrinação etc.

Ou seja, não somente as crianças brincavam com bonecas, ou réplicas de brinquedos dos adultos, pois as bonecas, por exemplo, eram objetos de uso de bruxos e feiticeiros da época e eram usadas em presépios.

Havia o gosto pelos bibelôs (uma sobrevivência burguesa da arte popular dos presépios italianos ou das casas alemãs, por exemplo), os chamados fantoches que divertiram e dominaram Paris inteira, e de tal forma que não se podia ir a nenhuma casa sem encontrar alguns, pendurados nas lareiras, o teatro de marionetes, uma outra manifestação da mesma arte popular da ilusão em miniatura.


Do século XVI até o início do XIX, a boneca serviu às mulheres elegantes como manequim de moda.

É possível que exista uma relação entre a especialização infantil dos brinquedos e a importância da primeira infância...

A infância tornava-se o repositório dos costumes abandonados pelos adultos.

Por volta de 1600, a especialização das brincadeiras atingia apenas a primeira infância; depois dos três ou quatro anos, ela se atenuava e desaparecia. A partir dessa idade a criança jogava os mesmos jogos e participava das mesmas brincadeiras dos adultos, quer entre crianças, quer misturada aos adultos.

Tanto as meninas, quanto os meninos brincavam de boneca.

Também não havia a discriminação moderna entre meninas e meninos: ambos os sexos usavam o mesmo traje, o mesmo vestido.


Somente a partir do séc. XVII é que a noção de inocência infantil foi imposta, gerando assim, uma regularização com relação ao que era praticado contra as crianças. Estas foram, então, comparadas a anjos.

No século XVII, com o início da escola, essa funcionava como enclausuramento, separando as crianças dos adultos, porém, atribuindo maior importância à Educação e despertando a preocupação psicológica e moral.

Ao mesmo tempo a família tornou-se um lugar de afeição necessária entre pais e filhos e as crianças saíram do anonimato.

A escola substituiu a aprendizagem doméstica como meio de educação. Ao iniciar o processo de escolarização, a criança deixou de crescer naquele sistema, foi separada dos adultos e entrou num processo de enclausuramento – como os loucos, pobres e prostitutas. (CORTEZZI REIS, 1995).


Nessa época, eram comuns os castigos corporais, a delação e vigilância constantes.

Esse autoritarismo e severidade geravam problemas psíquicos nas crianças, numa tentativa falha de se conquistar a boa educação dos indivíduos.

Também surge a preocupação com a educação moral das crianças e alguns jogos, antes permitidos, passam a ser considerados inadequados, como os jogos de azar.

A indiferença moral da maioria e a intolerância de uma elite educadora coexistiram durante muito tempo.

Ao longo dos séculos XVII e XVIII, porém, estabeleceu-se um compromisso que anunciava a atitude moderna com relação aos jogos, fundamentalmente diferente da atitude antiga. Esse compromisso nos interessa aqui porque é também um testemunho de um novo sentimento da infância: uma preocupação, antes desconhecida, de preservar sua moralidade e também de educá-la, proibindo-lhe os jogos então classificados como maus, e recomendando-lhe os jogos então reconhecidos como bons. (ARIÈS, 1985)


Já no século XVIII, a Psicopedagogia trouxe grandes contribuições ao desenvolvimento do corpo e espírito da criança. A preocupação com a higiene e a saúde física passaram a existir.

Surgiu também a figura do médico da família e a mãe passou a desempenhar papel fundamental na vida da criança, a o ser incentivada a amamentar, fato que antes era relegado as amas de leite, mas ainda havia um afrouxamento dos laços afetivos.

As relações entre pais e filhos possuíam lacunas a serem preenchidas. O pai (o patriarca) era dono do poder e saber e, em segundo plano, colocava o afeto.

Hoje a criança assume outro papel na sociedade.[...]

A família deixou de ter como núcleo pai, mãe e filhos, podendo ser composta por avós, tios e sobrinhos, somente mãe e filhos, pai e filhos, padrastos, madrastas...

Há uma preocupação muito maior com diversos aspectos da infância.


Nessa nova sociedade o pai perdeu a posição principal dentro da estrutura familiar e as crianças assumiram esse papel tornando-se indispensáveis à vida cotidiana.

A falta de hierarquia e da autoridade saudável dos pais produz crianças que não suportam frustrações e são incapazes de pensar ou buscar soluções criativas para suas dificuldades.

A preocupação excessiva com o prazer das crianças colocou os pais em segundo plano e os adultos passaram a projetar seus desejos e frustrações em seus filhos.

A vida moderna, os avanços tecnológicos das últimas décadas, a profissionalização da mulher, o número reduzido de filhos por família, têm levado a um aumento do individualismo tanto no adulto, como na criança. Como parte dos valores modernos, o incentivo à preservação da individualidade, tem conduzido esse culto ao individualismo, formando crianças mais narcisistas. (CORTEZZI REIS, 1995).


Ao mesmo tempo, milhares de brinquedos invadem as lojas e as casas das famílias, com especificidades para todas as idades, com diferentes objetivos pedagógicos, alguns preocupados com o desenvolvimento infantil, outros nem tanto.

A tecnologia ampliou as possibilidades das crianças com celulares, jogos, computadores, vídeo games, brinquedos eletrônicos, resultados de uma sociedade capitalista que promove o consumo exagerado como forma de obtenção de lucro para as empresas.

As crianças são vítimas de propagandas que induzem o tempo todo ao desejo de ter, transformando esse desejo numa necessidade, que não é real.

Os pais, muitas vezes, querendo satisfazer seus próprios desejo e a falta de tempo que têm para dedicar as brincadeiras aos seus filhos, compram além do que deveriam dar aos filhos, ou até mesmo além das suas possibilidades financeiras.


Atualmente, muito se discute a importância da afeição e que toda criança precisa de limites, regras, deveres, mas muitos pais fazem tudo o que seus filhos pedem ou, com medo de serem autoritários demais (a exemplo de seus próprios pais), deixam os filhos a bel-prazer.

Isso contribui para a formação de jovens inconseqüentes e despreparados para o exercício da vida futura.

Tornam-se individualistas, indisciplinados, narcisistas e inseguros pelo meio social que vivenciam. Possuem pouco senso de responsabilidade, recebem poucos valores, quase não têm deveres, mas muitos direitos, que também não têm sido respeitados.

A violência contra a criança cresce e inúmeros casos de homicídio, lesões corporais provocados até pelos próprios pais aparecem em jornais e revistas pelo mundo todo.


Mesmo com a grande quantidade de estatutos e leis que protegem a criança e o adolescente, temos crianças em situação de risco e vulnerabilidade, privadas de afeto, educação, saúde e moradia dignas.

As crianças de hoje são mais valorizadas?

São espertas, questionadoras e constantemente estão passando por transformações.

Contudo, ainda sofrem a violência física e afetiva.

Como a própria Cortezzi destaca: “Falta ainda, uma delicadeza no trato com a criança.”



(Aline Caetano Begossi)

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