Há
dentro de nós uma chama sagrada coberta pelas cinzas do consumismo, da busca de
bens materiais, de uma vida distraída das coisas essenciais.
É
preciso remover tais cinzas e despertar a chama sagrada.
E
então irradiaremos. Seremos como um sol...
O espírito
do Natal, sua espiritualidade específica, é exatamente o oposto do espírito
dominante na cultura atual, que é um espírito marcado pelo consumo, pelo
mercado, pela concorrência, pela compra, pelo negócio, pelo interesse.
Um
espírito que transforma tudo em mercadoria, do sexo a Deus.
O
Natal vive da gratuidade, da doação, da singeleza, da convivialidade, do dom de
se fazer presente ao outro.
Vive
da alegria de ver uma vida nascendo, porque não pode haver tristeza quando
nasce a vida.
E
de saber que essa criança que está aí, o divino Infante, somos nós,
fundamentalmente.
Porque
há em nós uma dimensão de criança dourada que nunca se perdeu e que permanece
para além da idade adulta, reclamando seu direito de entender a vida também
como algo lúdico, algo leve, algo que vale por si.
Pouco
importam os interesses em que investimos na nossa vida. Ela vale por si mesma,
porque é um valor supremo.
O
Natal quer ressuscitar essa dimensão espiritual no ser humano, quer anunciar
que é nessa atmosfera que Deus também se acercou de nós.
Não
veio como um César poderoso nem como um sumo-sacerdote, menos ainda como
empresário ou filósofo.
Ele
se aproximou na forma de uma criança pobre que nasce no subúrbio, no meio de
animais.
Para
que ninguém se sentisse distante Dele, para que todos pudessem experimentar o
sentimento de ternura que desperta uma criança que queremos carregar no colo e
sobre a qual nos vergamos, maravilhados.
Este
é o caminho que Deus escolheu para acercar-se de nós, para poder andar conosco
por nossos estreitos caminhos.
Talvez
seja um Deus que não nos explique a razão do mal do mundo, mas que sofre junto
conosco.
Talvez
não nos explique por que tanto trabalho para tão pouca felicidade, mas trabalha
junto, e se faz carpinteiro.
Assume
tudo o que é radicalmente humano.
Chora
expressando a tristeza com a morte do amigo Lázaro.
Entretém
amizade com duas mulheres, Marta e Maria, e com Maria de Magdala, chamada de
sua companheira, por mais escandaloso que isto fosse naquele tempo.
Enche-se
de ira sagrada e toma do chicote quando vê o espaço sagrado sendo transformado
num mercado.
Mas
também se enche de indizível ternura abraçando as crianças e dizendo,
resolutamente, que ninguém as afaste.
Tudo
isso é Jesus, tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal.
Um
Deus que encontramos dentro de nós e de nosso cotidiano, sem precisar buscá-lo
aqui e ali, mas buscá-lo na nossa interioridade, onde Ele, um dia, penetrou e
de onde nunca mais saiu, nos fazendo filhos e filhas, semelhantes ao seu Filho
Jesus.
E
quando chegar a nossa hora de partir, Ele vem, toma o que é Dele e leva para o
Seu Reino, isto é, nos leva cada um para Sua casa, porque nós, Seus familiares,
pertencemos à casa Dele.
Este
é para mim o significado maior da encarnação, do mistério do Natal que
celebramos, um dos pontos altos da espiritualidade cristã.
Em
um mundo altamente conflituoso, ameaçado de todas as partes, podemos fazer um
parênteses e dizer:
“Agora
não.
Agora
vamos festejar, vamos comer, vamos ser todos irmãos e irmãs, vamos acender a
luz na convicção de que a Luz tem mais direito do que todas as trevas.
Fazemos
isso tudo por causa Dele, Jesus, o Filho bem-amado, porque somos irmãos e irmãs
Dele, também filhos e filhas bem-amados.”
Se
reservarmos em nossa vida um pouco de espaço para essa espiritualidade, ela vai
nos transformando, pois este é o condão da espiritualidade: produzir uma
transformação interior.
Essa
transformação acenderá nossa chama interior que produz luz e calor e nos dá mil
razões para vivermos como humanos.
Assim,
caminharemos serenos neste mundo, junto com outros e na mesma direção que
aponta para a Fonte de abundância permanente de vida e de eternidade.
E
mergulharemos nessa Fonte de espiritualidade, que é Fonte de espírito, de vida,
de amorização, de realização e de paz.
(Leonardo
Boff / Espiritualidade: Caminho de Transformação)
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