"Nós não somos seres humanos tendo uma experiência espiritual. Somos seres espirituais tendo uma experiência humana"
(Teillard de Chardin)
22 fevereiro 2014
Depoimento de um suicida
No Hospital de Maria, no plano espiritual.
Não existe olhar mais tristonho que o de remorsos, e por ali era só o que víamos.
Aproximei-me de uma jovem que se havia atirado do alto de um edifício.
Ela caminhava devagar; observando-a, pareceu-me estranha: era como se ela fosse de porcelana e houvesse trincado.
Nas partes em que sofrera fratura no corpo físico, apresentava ainda dificuldade de movimentos.
Sorri. Meio envergonhada, retribuiu-me o sorriso, iniciando a conversação:
- És suicida?
- Não, não sou. Aqui me encontro em estudo.
Com triste expressão, falou:
- Deve ser muito bom vir até aqui na condição de estudante.
- Por que se suicidou?
- Fui abandonada pelo namorado e julguei que sem ele não suportaria viver.
- Irmã, há quanto tempo isso aconteceu?
- Há dez anos. O remorso me corrói o espírito. Muitas vezes me apalpo, procurando em mim algo que possa interromper a vida. Parece-me que desde aquele terrível dia jamais minha mente cessou de trabalhar; é um desespero constante.
Por mais que eu receba ajuda, sinto-me consciente a cada momento do meu gesto impensado.
Como é mesmo o teu nome?
- Luiz Sérgio – falei, estendendo minha mão em sinal de sincera amizade.
- Luiz Sérgio, não sei por que não existem na Terra campanhas de esclarecimento sobre o suicídio.
Fala-se tanto em aborto, em assassinato, em furto, mas ninguém se lembra de alertar sobre o pior dos crimes.
Vamos até o jardim, sinto-me ainda muito cansada, lá saberás tudo.
Bem alojados sob um belo caramanchão florido, esperei pacientemente que ela iniciasse o relato:
- Tinha eu quinze anos quando conheci Alexandre. Foi amor à primeira vista: apaixonamo-nos, um pelo outro. Inebriante, entregamos-nos intimamente e, quando percebi, eu não era mais a querida namorada e sim a mulher da qual ele vinha se cansando.
Fui ficando ciumenta, desesperada, insegura, e as minhas reclamações o cansavam cada vez mais.
Um dia ameacei-o de contar tudo a meu pai. Olhando- me firmemente, redarguiu: “Não foste forte e cuca livre para assumir um caso? Então, tem agora dignidade pra compreender que tudo acabou. Foi belo enquanto durou”.
Nem podes, Luiz, imaginar o que me aconteceu.
Ele tinha razão: eu não estava preparada para uma entrega tão íntima.
Qualquer mulher, quando chega a uma situação como essa, precisa estar despojada de preconceitos e eu sempre sonhara entrar de braços dados com meu pai em uma igreja florida e o meu príncipe me esperando no altar com o olhar de homem apaixonado.
- Então, por que você iniciou essa aventura?
- Paixão e falta de coragem para negar.
- Mas hoje, Lucy, as menininhas estão indo nessa e, muitas se casando apenas por casar.
Nem sempre a orientação sobre liberdade é a correta e assim vários jovens estão se vendo presos em uma rede de remorsos.
Mas e depois? Conte minha irmã, eu a interrompi.
- Alexandre começou a me evitar. Bastava eu chegar onde ele estivesse, para que se retirasse. Um dia fui procurá-lo em sua casa e lá encontrei uma jovem de minha idade, que me foi apresentada como sua noiva.
Abafei um grito em meu peito, tal a minha dor.
Quando de lá saí, só desejava morrer.
Chegando a casa, tomei a decisão e saltei, à procura da morte.
Mas ela não existe e me vi estirada, toda moída, lá no asfalto.
Perdi a noção do tempo; lembro-me apenas que uma velhinha sempre ficava ao meu lado, dando-me forca através da prece: era minha avozinha.
Muitas vezes desejei levantar, mas podes imaginar alguém todo quebrado? Assim era a minha realidade.
Pensei demais, ate que um dia minha avó ajudou-me a me erguer e, com dificuldade, conseguimos dali sair, chegando até um centro espírita. Graças às preces aos suicidas, recebemos um cartão que nos permitia um tratamento na própria casa.
O meu sofrimento só cessaria quando eu tivesse setenta e cinco anos, época em que estava programado o meu desencarne natural.
- Irmã, por que tudo isso? Temos presenciado suicidas já conscientes, que não padeceram tanto.
- Luiz, muitos aprenderam a desencarnar, e depois, cada caso é um caso.
- E daí, Lucy? Pode continuar...
- Sim, faz-me muito bem recordar, principalmente os tratamentos nos grupos especializados. Ah, isso é ótimo! Gostaria de relatar. Éramos levados até o grupo mediúnico, pois que internados nos encontrávamos naquele Centro.
Quando entrávamos na sala, muitos sentiam o odor forte, nós, principalmente, éramos atormentados com o cheiro dos nossos próprios corpos putrificados e, muitas vezes, tínhamos a impressão de que os vermes nos corroíam.
O grupo mediúnico que prestava auxilio era composto de pessoas muito equilibradas, já que nós nos perdêramos por fraqueza.
Não podes imaginar o alivio que experimentava o espírito de um suicida ao contato com um médium amoroso.
Quando o mentor nos aproximava do médium, era como se o nosso espírito adormecesse, anestesiado pelos fluídos bons do encarnado, afastando-se de nós aquela desagradável sensação que vínhamos experimentando desde o instante do ato impensado.
Muitos choravam quando eram retirados de juntos do médium; era como se nos tirassem o oxigênio.
Luiz Sérgio existem tão poucos grupos que prestam ajuda aos suicidas! Para esses grupos, não são necessários médiuns de psicofonia, pois muitas vezes o suicida não deseja falar, almeja, apenas, deixar de sentir o desespero.
Enganam-se aqueles que organizam grupo de auxilio ao suicida, somente com os chamados médiuns de incorporação.
Os encarregados devem aproveitar aqueles que são ótimos auxiliares do Cristo, mas ainda esquecidos na Doutrina – os médiuns doadores. Só o contato do doente com um médium equilibrado já o beneficia.
E ali, Luiz Sérgio, permaneci muitos meses, até que um dia fui trazida até aqui, onde já me sinto curada.
Sei, entretanto, que levarei de volta, quando reencarnar, um corpo doente, porque eu mesma o destruí e só o meu coração regenerado poderá curar-me.
Esforçava-se para não chorar. Segurei a mão de Lucy e, com os olhos orvalhados de lágrimas, falei-lhe:
- Minha querida irmã, jamais a esquecerei; sempre que eu puder, virei revê-la. Você representa também para mim uma mão estendida. Mão esta que precisou ser marcada pela dor, para voltar à vida.
- Obrigada, Luiz Sérgio, fico contente por ter-te conhecido. És muito bacana; a tua alegria me fez lembrar o passado, quando eu sonhava em ser feliz.
- Sonhava não, Lucy, sonha, porque como diz Ocaj: “Não assassinemos as nossas realidades para não distanciarmos nossos sonhos”.
Ela me fitou e pela primeira vez vi a esperança naqueles belos olhos azuis.
Apertando bem forte sua mão, despedi-me.
Caminhei, pensando:
“Deus, como sois poderoso em tão bem nos compreender. Se hoje nada desejamos, amanhã, em busca de algo nos encontraremos e assim, Pai, ides compreendendo as nossas fraquezas e não nos ofertando por ofertar e sim, quando já adultos, soubermos o que desejamos.
Hoje, Senhor, peço-Vos por todos aqueles que vivem duras e cruéis realidades e estão em vias de deixar tudo para trás através do suicídio.
Fortalecei, Senhor, os Seus protetores para que possam segurar bem firme essas almas em desespero”.
Que estas linhas possam chegar às mãos de todos aqueles que desesperados se encontram e que eles saibam que deste lado do horizonte existe alguém que todos os dias pede a Deus muita paz e muito amor para todos os seus irmãos.
Eu amos todos vocês, meus queridos amigos.
(Mãos Estendidas – Luiz Sérgio – cap. V – pág. 29)
Fonte: http://avidanoalem.blogspot.com.br/2010/04/depoimentos-de-suicidas.html
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