Alguém que experimenta
a condição de cuidar de uma pessoa idosa, seu familiar, um ente
amado, fruto de relações saudáveis e que no momento encontra-se em
condições de saúde física e mental satisfatória, talvez fique
num primeiro momento espantado com o título desta matéria.
Por outro lado, aquele
que há muito tempo navega por estas águas, o “mar do cuidado”,
sabe exatamente do que vamos abordar.
O cuidar é inerente à
vivência dos humanos.
Pode acontecer de a
pessoa ter que assumir de forma súbita e inesperada a tarefa
cuidativa.
Os motivos de assumir
tal compromisso vão da opção à obrigação, muitas vezes, por ser
a única pessoa disponível para cuidar.
Tenho observado nas
minhas leituras, de estudos e também da realidade, que essa tarefa é
eminentemente feminina, raras são às vezes que encontramos a figura
masculina a frente desta situação.
Assim, desejo iniciar
minhas considerações tomando por partida a questão de “assumir
de forma súbita e inesperada a tarefa cuidativa”.
O que significa isso na
vida de uma pessoa? O que significa para uma mulher, de um momento
para o outro assumir tal compromisso? Alguém que está lendo a
matéria, poderia refletir, por um momento apenas, e se perguntar:
estou preparado para tal?
Minha experiência como
profissional de saúde, que há muitos anos compartilha vivências
com cuidadores de idosos, sob diversos aspectos revela que se tornar
cuidadora de uma pessoa idosa de forma súbita e inesperada significa
uma verdadeira “revolução no cotidiano”.
Pode ser que signifique
uma sucessão de renúncias: a mulher demite-se do emprego, desiste
de projeto de vida, abandona suas atividades de lazer, abdica da sua
privacidade, renuncia os momentos de folga, resigna a uma condição
solitária de cuidadora e por vezes cede as “falsas chantagens”
da pessoa cuidada.
Por vezes, é o
abandono de si, em função do outro.
Seguindo, quanto aos
determinantes deste compromisso, o motivo pode ser “da obrigação
a única opção”.
Quando se é filha,
mãe, irmã ou cônjuge, qualquer que seja o tipo de relação
construída ao longo da vida, a mulher encara para si tal tarefa e
leva adiante até o momento derradeiro da missão cumprida.
Quando se é nora,
existe uma particularidade, em especial, o homem aceita muito bem, se
a sua mulher cuida do seu pai ou da sua mãe, mas quando a situação
se inverte, quando a “sua mulher” precisa cuidar do pai ou da mãe
dela, nem sempre o companheirismo prevalece.
Frequentemente,
encontramos casos em que o homem abandona o barco, preferindo navegar
em outros mares, deixando sua companheira a deriva; quando eles não
desistem, repudiam os momentos de dedicação da cuidadora para com o
Ser cuidado.
Diante desse cenário,
cuidar pode ser uma vivência de “trevas”, de sofrimento, cansaço
e perdas.
Faz-se necessário
abordar essa questão. Pode ser que muitas cuidadoras passaram, estão
passando ou talvez, por momentos, se encontrem no mesmo barco.
Quando conhecemos
outras realidades chegamos a conclusão que nossas experiências são
partilhadas por tantas outras pessoas, isso de certo modo nos
conforta, pois começamos a entender que determinados fatos da vida
são factíveis a muitos.
Por outro lado, é
importante que, enquanto cuidadoras, não nos abandonemos a própria
sorte, não venhamos a navegar e nos afogar num mar de lamúrias.
Passar por vítima ou
despertar a piedade alheia, não nos ajuda em nada; muito pelo
contrário, só aumenta o peso do “fardo”, ou seja, faz do nosso
dia a dia uma vivência pesarosa.
Precisamos, sim, ter a
consciência que mesmo diante de certas circunstâncias, somos o
caminho de luz para aqueles que dependem de nós.
Aquele ser humano
frágil, dependente, incapacitado e que muitas vezes perdeu a razão
da sua mente, conta apenas com a sua cuidadora, aquela mulher, que em
algum momento do seu viver, assumiu para si tal compromisso.
Muitas vezes, ela nem
se dá conta do quanto sublimes e solidárias são as pequenas ações
do dia a dia: um bom dia, um olhar que enxerga aquele que está na
sua frente, uma escuta sensível, que é capaz de ouvir o que está
por traz de um lamento.
São vivências de luz
- se em cada um de nós existe uma partícula divina, talvez por
isso tenhamos que valorizar tanto as nossas relações,
principalmente as cuidativas.
Não basta cuidar
pensando no outro, enquanto corpos enfermos.
Precisamos cuidar
pensando no outro, enquanto uma alma enferma.
Somos, sim, um feixe de
luz.
Cuidar é iluminar a
escuridão do outro.
(Prof. Dra. Marilene
Rodrigues Portella)
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