"Nós não somos seres humanos tendo uma experiência espiritual. Somos seres espirituais tendo uma experiência humana"

(Teillard de Chardin)

14 janeiro 2012

O retrato

   
Gilene, senhora esperta e conversadeira, que adorava o mexerico, costumava sair de seu lar, relando aqui e ali, procurando motivos quaisquer que lhe servissem de combustível a alimentar a língua irrequieta.

Com efeito, sentia a Dona Gilene indizível prazer ao saborear o excitante prato de uma bem enredada fofoca e viam-se lhe as feições irradiar felicidade.
 

Ora, certa noite, ou noite certa, D. Gilene acerta, ao descer de um veículo, com um acontecimento assaz interessante.
 

Pois, entrando em um parque florido, de perfumes convidativos ao passeio noturno, depara com a cena inspiradora:  olhando para todos os lados, em busca de algo que pudesse favorecer a crítica, viu, dentro de um carro, um homem em completa simbiose, em troca recíproca de amor e carinho com a companheira.
 

Gilene exultou de contentamento. Para ela, nada havia de mais importante. Não lhe importava o convite de natureza, ao coração, concitando-o a haurir as maravilhas do sentimento elevado; seus olhos estavam cegos quanto à observância dos reflexos do Criador, na própria criação de beleza esfuziante; sua sensibilidade psíquica estava de todo abafada pela fuligem escura da maledicência.
 

Nada mais, enfim, lhe importava, e nem mesmo notara o ridículo de seus passos de felino a tocaiar a presa incauta no meio escuro, os olhos a brilhar. 

Esgueirando-se por detrás de uma árvore amiga, saciava-se na contemplação do espetáculo, enquanto exclamava, sussurrando de si para consigo: - coitada da comadre Andréa! É o compadre Tião, com a safada da Ambrósia!
 

Os dois amantes, entrelaçados no interior do veículo, não suspeitavam, nem de leve, que estavam sendo assim focalizados, somente o lusco-fusco da noite com a luz da lua, em intercâmbio divino com as estrelas, viu quando a Gilene, passo a passo ainda mais cautelosos, retirou-se do local, por instantes.
 

Foi rápido à procura dos meios para concretizar a sua espetacular idéia: poucos minutos após, retornava ao local com um fotógrafo da sua faixa, porém mais habilidoso, o que lhe permitiu tirar duas fotos, em duas posições diversas. Gilene, a sorrir, continuava à espreita, repleta de incontida satisfação.
 

Os amantes se amavam, não viam. No dia seguinte Gilene se dirige à casa da comadre e, depois de preparar bem o ambiente, dizendo que detesta fofocas, mas que devido à amizade que as unia, se sentia na obrigação de relatar certos fatos. Narra tudo quanto viu e imaginou ver, a estupefata comadre.
 

Andréia jamais suspeitara que o marido pudesse imiscuir-se em situação semelhante, contudo, face à eloqüência e convicção da amiga, sentiu-se realmente perturbada.
 

Seu coração, àquela altura dos acontecimentos, estava por demais abrasado pelo ciúme infernal, mas Gilene ainda não se dera por satisfeita, dispondo-se a buscar as duas fotos que, certamente, àquela hora já estariam prontas.
 

Era a prova cabal e concludente, a destruição de um mito de virtudes. 

Andréia, sempre muito calma e ponderada, dessa vez não se dispôs a esperar. Queria ir, também. Ofereceu, inclusive, um cheque vultoso a Gilene, como prova de agradecimentos por ter-lhe colocado a par de tamanha traição. 

E lá foram as duas à casa do fotógrafo e batem. Gilene, impaciente, Andréia, aflita.
 

O fotógrafo, ao abrir a porta, ainda surpreendeu uma frase: - Olha, comadre, os retratos é que vão falar mais alto! Depois, percebendo a presença de Chiquinho (o fotógrafo), cumprimentou-o, avivando-lhe a memória sobre o seu encontro do dia anterior, e dizendo que tinha vindo buscar as fotos.
 

Sim, Chiquinho se lembrava perfeitamente. Ia passando pelo parque, quando foi abordado e requisitado. Estava precisando de dinheiro e aceitou.
- Lembra-se, senhor?
- Oh, sim, eu me lembro. Já estão prontas. Tirei duas cópias de cada pose, ficaram ótimos. Queiram entrar. Estejam à vontade que eu vou buscar.
 

Logo depois, volta ele com as fotos nas mãos, a soltar gostosas gargalhadas, exclamando:
- Esse povo é demais! Onde já se viu? Com uma cena assim, e um concurso, aposto que eu tiraria o primeiro lugar!  E vai entregando a D. Gilene, enquanto iniciava mais uma gargalhada. Adivinhe: o que  as fotos revelavam?
 

Pois Gilene, ao contemplá-las, revirou os olhos. Paralisou-se-lhe o pensamento, o coração lhe veio à boca. Como estivesse assentada, não caiu. Mas deitou, sem sentidos.
 

ERA DE SEU MARIDO, O RETRATO...


Fonte: http://www.lema.not.br/artigo_canal.php?pagecanais=faq&acao=resposta&sub=6&princi=Se%E7%F5es&recstart=0&q_id=339













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