"Nós não somos seres humanos tendo uma experiência espiritual. Somos seres espirituais tendo uma experiência humana"

(Teillard de Chardin)

21 agosto 2012

Eu sou uma alma


O que faz o homem livre?

A alma. 

Quem diz livre, diz responsável.

Responsável por tudo nesta vida?

Efetivamente, não, porquanto nada há mais demonstrado do que a prosperidade possível e freqüente dos maus e o infortúnio imerecido dos bons durante a sua passagem sobre a terra.

Quantos homens justos não tiveram só angústias e misérias até o seu derradeiro dia? 

Quantos homens criminosos viveram até a mais extrema velhice no gozo pacífico e sereno de todos os bens deste mundo, neles incluindo a consideração e o respeito de todos! 

É o homem, então, responsável depois da vida? Evidentemente, sim, pois que não o é só durante ela. Alguma coisa, pois, dele sobrevive para submeter-se a essa responsabilidade, a alma.

A liberdade da alma explica a sua imortalidade. 

A morte não é, portanto, o fim de tudo. Ela não é senão o fim de uma coisa e o começo de outra. 

Na morte o homem acaba, e a alma começa. 

Tome-se por testemunho o que considerar o rosto de um ente amado com essa ansiedade estranha, feita de esperança e de desesperança. 

Digam esses que atravessam essa hora fúnebre, a última alegria, a primeira do luto, digam se não é verdade que bem se sente que ainda há ali alguém que tudo não acabou?

Sente-se em roda dessa cabeça como o frêmito de asas que acabaram de expandir-se, uma palpitação confusa e inaudita flutua no ar ao redor desse coração que não bate mais. Essa boca aberta parece chamar o que acaba de partir e dir-se-ia que deixa cair palavras obscuras no Mundo Invisível.

Eu sou uma alma.

Bem sinto que o que darei ao túmulo não é o meu Eu, o meu Ser. O que constitui o meu eu, irá além.

Terra, tu não és o meu abismo.

O homem outra coisa não é senão um cativo.

O prisioneiro escala penosamente os muros da sua masmorra, trepa de saliência em saliência, coloca pé em todos os interstícios e sobe até ao respiradouro. Aí, olha, distingue ao longe a campina, aspira o ar livre, vê a luz.

Assim é o homem.

O prisioneiro não duvida que encontrará a claridade do dia, a liberdade, como pode o homem duvidar se vai encontrar a Eternidade à sua saída? 

Porque não possuirá ele um corpo sutil, etéreo, de que o nosso corpo humano não pode ser senão um esboço grosseiro?

A alma tem sede do absoluto e o absoluto não é deste mundo. 

É por demais pesado para esta terra. 

Há duas leis, a lei dos globos e a lei do Espaço. A lei dos globos é a morte. O limite exige a destruição. A lei do Espaço é a Eternidade. O Infinito permite a expansão.

Entre os dois mundos, entre as duas leis, há uma ponte, a transformação. A ambição do vivo dos globos deve ser, pois, tornar-se um vivo do Espaço.

O mundo luminoso é o Mundo Invisível. O Mundo do Luminoso é o que não vemos. Os nossos olhos carnais só vêem a noite. Ah, do que vive com os olhos abertos sobre o mundo material e com as costas voltadas para o mundo desconhecido!

A morte é uma mudança de vestimenta.

Alma, tu estavas vestida de sombra, vais ser vestida de luz. É no túmulo que o homem faz o último progresso.

Na morte, o homem fica sendo sideral. A morte é a vindita da alma. A vida, é o poder que tem o corpo de manter a alma sobre a terra, pelo peso que faz nela. A morte é o poder que tem a alma de arrebatar o corpo fora da terra pela assimilação.

Na vida terrestre, a alma perde o que irradia na vida extraterrestre, o corpo perde o que pesa.

A morte é uma continuação. O meu olhar penetra o mais que é possível nessa sombra, onde vejo, a uma profundidade que seria amedrontadora, se não fosse sublime, dealbar-se o imenso arrebol da eternidade.

As almas passam de uma esfera para outra, tornam-se cada vez mais luz, aproximam-se cada vez mais e mais de Deus.

O ponto de junção é no infinito.

O que dorme e desperta, desperta e vê que é homem.

O vivo que morre, desperta e vê que é espírito.


(Victor Hugo - Artigo publicado após a sua morte)

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