Se você tem a impressão de ouvir falar muitas vezes sobre espiritismo ultimamente, saiba que não é mera coincidência a frequência crescente das citações. Pode-se dizer que há um levante espírita em curso no entretenimento brasileiro, coroado agora pelo êxito comercial de Nosso Lar, filme brasileiro que estabeleceu o recorde de levar mais de 3 milhões de espectadores aos cinemas em apenas três semanas e acumula quase 1,7 milhão de bilhetes vendidos nos primeiros dez dias em cartaz, desde a estreia em 3 de setembro.
O caminho tem sido pavimentado nessa direção desde pelo menos 2008, quando Bezerra de Menezes – O Diário de um Espírito levou mais de 500 mil espectadores aos cinemas, a partir de um orçamento modesto de R$ 2 milhões (Nosso Lar custou dez vezes mais), levantado pela produtora cearense independente Estação da Luz Filmes.
A Globo Filmes detectou o movimento mais ou menos subterrâneo e se associou à Estação da Luz na produção de Chico Xavier, que estreou em abril deste ano, demorou oito dias para vender 1 milhão de ingressos e levou ao cinema até hoje 3,4 milhões de espectadores. O espiritismo avançou também na tela da TV Globo,através da novela das 18h, Escrito nas Estrelas.
O médium mineiro Chico Xavier (1910-2002) é referência presente nos três filmes, principalmente na dramatização homônima dirigida por Daniel Filho e protagonizada por Nelson Xavier e Ângelo Antônio. Um dos espíritos que ele afirmava guiá-lo era o do médico e político cearense Bezerra de Menezes (1831-1900), que se tornaria um militante espírita do século XIX. Xavier aparece em pessoa ao final de Bezerra de Menezes, recebendo mensagens do mentor morto. E Nosso Lar é baseado em livro homônimo atribuído ao espírito André Luiz, mas lançado por Chico Xavier – o médium escreveu 412 livros baseados na psicografia, ou seja, na transcrição de mensagens enviadas pelos mortos.
O êxito acumulado dos três filmes prenuncia uma avalanche de produções de temática parecida. O diretor de Nosso Lar, Wagner de Assis, fala de adaptar Os Mensageiros, também psicografado por Xavier. Um dos produtores de Chico Xavier, Tomislav Blazic, trabalha na adaptação cinematográfica de Ninguém É de Ninguém, da escritora espírita Zíbia Gasparetto. E a Estação da Luz já tem mais duas produções filmadas, As Mães de Chico Xavier e Área Q, que devem estrear em 2011.
Ponta-de-lança da voga espírita no cinema, essa produtora é braço cinematográfico da Associação Estação Luz. Essa ONG, fundada em 2004 no município cearense de Eusébio, esteve envolvida em controvérsia há um ano, ao captar recursos do Fundo Nacional de Cultura, do Ministério da Cultura (o MinC), que acabaram utilizados na realização da 3a Marcha Nacional da Cidadania pela Vida, na prática uma manifestação contra o aborto. Quando o caso foi revelado pela Folha de S.Paulo, o MinC determinou a devolução dos recursos pela Estação da Luz.
Dirigido por Glauber Filho (que foi presidente da TV Ceará, rede pública local) e Joe Pimentel (da produtora Trio Filmes), Bezerra de Menezes não trata de aborto, mas é explícito quanto ao tema em seu desfecho, quando um letreiro avisa: “Este filme é dedicado às milhares de vítimas de aborto provocado”. No mais, narra a trajetória do personagem interpretado por Carlos Vereza de modo sisudo, privilegiando os embates do espiritismo com a Igreja Católica e a intelectualidade. O tabu do suicídio também é referido de passagem, como “aquele que é considerado o crime mais afrontoso ao Criador”.
A repulsa ao suicídio, por sinal, é um dos fios condutores centrais de Nosso Lar. Desregrado e despreocupado com a própria saúde, o médico André Luiz (Renato Prieto) morre e é conduzido ao purgatório (chamado no filme de “umbral”), um pântano escuro e povoado por homens e mulheres maltrapilhos e dilacerados, em cenas que evocam vagamente o videoclipe "Thriller", de Michael Jackson. André sofre todo tipo de privação no umbral, antes de ser resgatado para o paraíso, batizado de “nosso lar”. Ali, descobrirá que passou pelo purgatório por ser um suicida, ainda que inconscientemente. Ao assimilar o proselitismo pelo trabalho incansável e ininterrupto e pela dedicação ilimitada aos outros espíritos, ele completará sua admissão ao “nosso lar”, até futura reencarnação.
O purgatório e o céu materializados na tela grande pelo diretor Wagner de Assis dá a Nosso Lar tom mais fantasioso em comparação aos outros filmes. O espírito de André passa primeiro por um ambiente hospitalar, depois por um campo verde entre nuvens (o purgatório escuro fica na periferia do paraíso), enfim pelo lar definitivo. Trata-se de uma cidade feita de gramados, casas tipo condomínio norte-americano, prédios à moda de Oscar Niemeyer e veículos futuristas de transporte – em diversas cenas, faz lembrar o parque Ibirapuera, ou o plano-piloto de Brasília. Os espíritos mais devotados são promovidos e comandam grandes ministérios, em simbologia análoga à dos governos políticos cá da Terra.
Nosso Lar não cita o catolicismo ou outras religiões, nem as relações entre o espiritismo e a mídia expostas por Daniel Filho em Chico Xavier. Prefere se deter exclusivamente na doutrina espírita, sob trilha sonora etérea composta especialmente pelo norte-americano Philip Glass (na cinebiografia de Daniel Filho, o compositor Egberto Gismonti foi o encarregado da trilha). De certo modo, pode-se perceber uma escalada na sequência formada por Bezerra de Menezes (a luta pela aceitação do espiritismo), Chico Xavier (a conquista de notoriedade) e Nosso Lar (o espiritismo em si).
Além do evidente interesse comercial e de nutrir espectadores sedentos pelo tema, a atual onda espírita vem trazer holofote àquelas práticas religiosas para além dos circuitos habituais, muitas vezes subterrâneos para o resto da sociedade. De quebra, provoca algo como uma saída do armário da crença e de alguns de seus praticantes. Dos diretores em questão, apenas Daniel Filho não se assume como espírita. Alguns dos atores envolvidos dão depoimentos públicos sobre suas devoções, casos de Carlos Vereza, Ana Rosa (presente nos três filmes) e Paulo Goulart (que interpreta um ministro em Nosso Lar e o entrevistador do programa Pinga-Fogo em Chico Xavier).
A presença de membros da família Goulart nas três produções remete a outra época do cinema nacional, quando foi lançado o bem mais modesto Joelma, 23º Andar (1979), de Clery Cunha. O filme dramatizava o incêndio do edifício Joelma, ocorrido em São Paulo, em 1974, sob o ponto de vista de uma jovem médium que morria no acidente e vinha tranquilizar sua família após a morte.
Lucimar era interpretada pela então adolescente Beth Goulart, que décadas depois, nos extras do DVD de Joelma, se pronuncia espírita e fala da concordância da família da Lucimar verdadeira com o filme. A história de Joelma, 23º Andar se baseava no livro Somos Seis, mais uma psicografia do onipresente Chico Xavier, e na época esteve longe de reanimar o cinema nacional.
(Fonte: www.ultimosegundo.ig.com.br)