"Nós não somos seres humanos tendo uma experiência espiritual. Somos seres espirituais tendo uma experiência humana"

(Teillard de Chardin)

22 julho 2014

O soldado de duas guerras


Havia um soldado patriota, corajoso, valente e muito bem treinado para atos de guerra e pronto para lutar por seu país.

Declarada a guerra, fora destacado, então na condição de oficial da infantaria, para comandar uma patrulha em sítio inimigo.

A patrulha fora surpreendida pelo inimigo, de modo que houve embate terrível, com mortes de ambos os lados. 

O comandante destemido, valente, corajoso e patriota, revelou-se firme no aniquilamento dos soldados inimigos, visto que a matança estava legitimada pela declaração de estado de guerra.

A guerra, o uso de armas letais, a violência, a matança e o aniquilamento do adversário tudo estava justificado no motivo da declaração formal de guerra.

Bastaria um armistício para que o estado de beligerância, autorizado, cessasse. Sem armistício a matança, de ambos os lados, era legítima e até desejada por orações da população de cada país.

Por todos os atos de guerra, violência, aniquilamento, matança, aprisionamento, tortura, humilhação os matadores seriam homenageados, condecorados, aplaudidos e erigidos à categoria de heróis.

As cenas descritas no episódio exemplificativo representam, nesta narração, uma vida, passada em um momento em que governantes de dois ou mais países legitimaram os atos mais terríveis de morte, em nome da paz e do amor, por certo contrários aos ensinamentos do Mestre Jesus, embora com utilização de seu Santo Nome.

Descrevam-se, agora, outras cenas, entre os mesmos povos os quais, terminada a primeira guerra, tempos depois, outra fora declarada, com os mesmos resultados de legitimação de atos terríveis à natureza humana.

Novos soldados foram convocados, mas também se convocaram os veteranos e oficiais da reserva das forças de cada país. Os veteranos foram convocados porque experientes em matar, conheciam todos os procedimentos que poderiam ser ensinados aos novos.

Ocorre que, dentre os veteranos, encontrava-se aquele Oficial destemido, corajoso, matador e adequado para comandar as tropas novas.

Mas ele, mais velho e mais reflexivo, evoluira moralmente e decidiu, de livre vontade, não participar da segunda guerra na condição de soldado.

Manifestou o desejo de participar na qualidade de socorrista, de pessoa que busca amainar o sofrimento do próximo, de permanecer ao lado de quem sofre as conseqüências da guerra sem se importar o lado ou a cor da farda de cada vítima.

Declarara que desejava participar da guerra, mas em favor de ambos os lados, porque os soldados, inimigos entre si, na verdade eram considerados irmãos e como tal deveriam ser reconhecidos e amparados nas aflições, nas agruras, no sofrimento e na dor.

A opção causou grande transtorno na rigidez de normas militares e, porque era algo pessoal, uma condição fora imposta: poderia o desejoso retornar ao campo de batalha, não mais ornamentado como soldado bem treinado, corpo perfeito e pronto para a guerra.

Retornaria sim, mas em outras condições, ou seja, com uma das mãos decepadas e uma perna amputada e roupa de tecido de má qualidade.

O soldado aceitou a condição e assumiu toda a responsabilidade de seus atos e assim o fez porque estava certo de que evoluíra moralmente e, ainda que mutilado e mal trajado, estava pronto para resgatar, para expiar o mal que fizera em nome da legitimidade da guerra; cumpriria outra missão, desta feita em nome do amor, da paz, da solidariedade humana.

Sua participação na guerra teria como fundamento os ensinamentos de Jesus e estava pronto para servir a ambos os lados, isto é a todos os irmãos soldados.

Com bastante dificuldade, por lhe faltar uma das pernas, claudicava apoiado em muletas e, com dificuldade maior, portava o que fosse possível para socorrer os aflitos, os feridos, os desamparados e quem, mesmo sem participar da batalha, por esta eram atingidos.

Fez vibrar, com rigor, suas armas: o amor, a piedade, a solidariedade, as lágrimas e orações nos últimos suspiros dos que desencarnavam. Fora um iluminado, um batalhador incansável na aplicação do amor e da estima ao próximo.

Serviu de referência a todos, porque a todos servira, sem se importar de que cor era a bandeira do soldado ou em que solo estava a pisar.

Quando surgia em um sítio, arrastando-se é certo, muitos ponderavam o porquê de alguém tão piedoso, tão bom, tão puro e determinado ao bem, tudo fazia sem uma das mãos e sem uma das pernas, enquanto outros, perfeitos, somente faziam o mal.

Houve mesmo quem, desacorçoado da vida, naquela guerra infeliz, ponderara a respeito de onde estava Deus, para permitir tamanha injustiça a uma pessoa tão pura.

Por certo todas essas pessoas desconheciam os acontecimentos da primeira guerra, onde a então magnânima pessoa figurou como terrível soldado, perfeito matador em nome da legalidade.

O inconformismo com o sofrimento injusto, para eles, do socorrista provocava debates e explicações as mais diferentes.

Certo dia, no auge das discussões, um enfermeiro ouvia tudo e nada dizia até que lhe endereçaram uma pergunta a respeito do porquê daquela injusta situação de uma pessoa tão boa.

Pessoa que a qualquer momento poderia ser morta, já que não portava arma, enquanto outros, maldosos poderiam ser salvos.

O enfermeiro, em poucas palavras, quase que sussurrando, disse o seguinte: – A explicação é simples e leva o nome de reencarnação.

E prosseguiu: – Por meio da reencarnação, espíritos corajosos se propõem ao resgate, ou à expiação ou mesmo ao cumprimento de uma missão, por causas anteriores as quais, quando aconteceram, poderiam até parecer legítimas, por causa da insuficiente evolução moral dos participantes.


(Aclibes Burgarelli)







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