"Nós não somos seres humanos tendo uma experiência espiritual. Somos seres espirituais tendo uma experiência humana"

(Teillard de Chardin)

28 abril 2022



"Em nossa escola no mais além, fui abordada certa feita por um matriculado, recém chegado da Terra e visivelmente sedento de enviar notícias aos parentes do mundo. 


Tinha os olhos extrapolando as órbitas e o verbo estava incontido na boca. 


Sem rodeios, foi direto ao assunto:


- É verdade que a senhora escreve aos vivos?

- Sim, respondi, tímida. Tanto quanto possível, valho-me do correio fraterno para envio de notícias e informes sobre a vida e suas experiências diversas, buscando despertar corações e alimentar a esperança. Em que posso ser útil?


O pobre homem inundou os olhos de lágrimas e num gesto inesperado, beirando o desespero, se ajoelhou diante de mim, clamando em súplica comovedora:


- Por misericórdia, leve meu recado aos ainda mergulhados no corpo, buscando acordar alguns para a realidade da vida, antes que a morte os acolha no turbilhão em que me encontro. Posso contar com seu concurso, minha senhora?


Assenti com a cabeça e ele, com mãos trêmulas, me fez entrega de um bilhete rascunhado, que ora repasso aos olhos de a quem possa interessar.


'Fui pai muito cedo e não tinha maturidade para a grave responsabilidade de colocar um filho no mundo. 

Irresponsável no sexo, abusei da libido, sem atentar que de uma hora para outra uma das parceiras me apareceria em casa, apontando o ventre, onde se acolhia o fruto de minha imaturidade. 

E tanto brinquei com a sorte que uma delas me surgiu, histérica, asseverando que em breves meses seria pai. 

Tremi como vara verde fustigada pelos ventos de agosto. Aleguei, numa defesa precipitada, que não era meu, e ela partiu para a agressão, como uma loba a defender sua ninhada:

- Só tive um parceiro na vida, seu traste imprestável! Como ousa insinuar que me envolvi com outro homem, se você foi meu primeiro e único parceiro, ora resultando nessa loucura que me está tirando do equilíbrio?

- Assuma seu filho e se vire para dar conta!

O chão pareceu se abrir sob meus pés e o tempo cavalgou como um corcel ligeiro na pradaria das horas.  

Dentro de oito meses eu tinha um menino em meus braços.

De alguma forma aquele guri mexeu comigo. 

Percebi que precisava trabalhar dobrado para sustentar o moleque, mas esqueci de educar aquela alma que eu ajudara a vestir de carne. 

Como dar a ele o que não possuía nem para mim?

Com dois anos de vida, abandonei o menino aos cuidados da avó materna e da mãe, tão leviana quanto eu, e busquei nos folguedos e na cachaça esquecer aquela paternidade não planejada. 

Novas aventuras, encantadoras parceiras, casas noturnas de muita badalação, dinheiro e prazeres. Era tudo que eu desejava!

O menino cresceu, órfão de pai vivo, e buscou no mundo construir sua própria história.

Já o tinha apagado da memória quando, tomando uns tragos numa taberna miserável, junto a outros cúmplices do copo, fui rudemente agredido por um jovem de pouco mais de vinte anos. 

Como nunca levei desaforo pra casa, saquei do punhal e numa briga fiz prevalecer minha destreza com a afiada lâmina.

Quando o corpo já não exibia sinais vitais, a polícia chegou  e fui algemado, sendo levado a um distrito policial como um reles homicida. 

Fichado, preso e lançado numa enxerga com outros desorientados, ali aguardei vários dias o desfecho do meu caso.

Insensível investigador me tirou da cela e fui informado que o rapaz que tinha matado era meu próprio filho, reconhecido pela mãe a quem eu abandonara dezoito anos antes. A certidão de nascimento não deixava qualquer dúvida nesse ponto.

Mergulhei na loucura de vez!

Lançado outra vez entre grades, minhas noites viraram um filme de terror.

Insônia, falta de apetite, sombras me espreitando a vigília, tudo aquilo somado atraiu a tuberculose e o resto foi tragédia atrás de tragédia.

Só lembro que num amanhecer de muita agonia, dei uma tosse forte e vi tudo ficar rubro. Depois, a inconsciência total.

Apaguei por completo.

Quando despertei e dei por mim, estava nessa casa de saúde. 

Tratamento demorado, banhos de imersão, caldos ralos e sem sabor, fui assistido por médicos e enfermeiros abnegados, até que uma tarde fui chamado a conversa reservada. 

Fiz muitas perguntas e obtive respostas para quase todas.

A ficha caiu. 

Aliás, caí, desmoronei.

A verdade de que tanto fugira me alcançara, impiedosa!

Vivera como um libertino, fruíra a juventude como um devasso e ceifara no punhal meu próprio filho. Estava ali, por caridade, na condição de mendigo de luz e perdido em si mesmo.

Por favor, senhora, leve esse meu bilhete aos homens do mundo! Diga-lhes que a vida continua depois da caveira e que não existe dor maior do que a consciência de tempo perdido, jogado fora nas dissipações e nas loucuras do sexo sem compromisso.'



Li, ocultando minha emoção para não feri-lo, entre a surpresa e compaixão, mas quando tirei os olhos do papel dois enfermeiros se postavam diante dele, o levando como menino sem rumo para a terapia da cabeça desvairada pelo remorso e consumida pela loucura.


Pensando em muitos que, nas trilhas do mundo parecem imitar a mesma trajetória, transcrevo o bilhete ligeiro que acolhi num corredor de uma casa de acolhimento na vida espiritual, sem lançar qualquer juízo de valor ou emitir opinião, ciente de que toda semeadura hoje é certeza de colheita nas terras do amanhã, como nos alertara Jesus."


Marta


Salvador, 28.04.2022




Fonte: https://www.facebook.com/oconsolador.consolador




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