"Nós não somos seres humanos tendo uma experiência espiritual. Somos seres espirituais tendo uma experiência humana"

(Teillard de Chardin)

01 maio 2013

Dica de livro: "O lugar escuro", de Heloísa Seixas



Uma história de senilidade e loucura.

As mudanças de personalidade, a depressão, as monomanias, a paranóia psicótica, o medo, as alucinações.

Como lidar com alguém que está sendo afetado de forma inexorável pelo mal de Alzheimer?

E pior – o que fazer quando esse alguém é sua mãe?

Em "O lugar escuro", Heloisa Seixas narra uma história real, a sua própria, entrelaçada com um pesadelo familiar.

Todas as fases da lenta degradação de uma mente comprometida são descritas de forma minuciosa e assustadora neste livro que, de tão fantástico, às vezes parece ficção, ou "uma espiral assombrada", como define a escritora.

Mas quem já conviveu com pessoas afetadas pelo mal de Alzheimer sabe que a realidade é assim – uma sucessão de memórias perdidas, um vazio que vai tomando tudo, uma realidade fugidia, em que o doente se transforma no avesso de si mesmo.

Como quem procura pistas para sair de um labirinto, Heloisa Seixas reproduz essa trajetória, que nos assusta e atrai, com sua dose diária de estranhamento e loucura.

Das raízes familiares, num casarão da Bahia, à vida no Rio dos anos dourados, Heloisa faz uma viagem ao passado de sua mãe, esquadrinhando a mente que aos poucos se estilhaça.

O lugar escuro é um relato corajoso – narrativa catártica que tem o poder de emocionar, e também de aproximar o leitor desse cotidiano que massacra um número cada vez maior de pessoas e que é a principal causa de demência entre idosos no Brasil e no mundo.

Segundo dados da Academia Brasileira de Neurologia, com o crescimento da população com mais de 60 anos no país – que deve chegar a 24 milhões de pessoas daqui a dez anos – o mal de Alzheimer deve se tornar um problema de saúde pública. Hoje, no mundo, já se contabilizam mais de 20 milhões de casos da doença.

*

Abaixo, um pequeno trecho do livro -  que teve inclusive uma peça teatral adaptada, falando de relações familiares a partir da doença de Alzheimer .

*


Foi no dia em que minha filha saiu de casa que minha mãe enlouqueceu.

Não foi gradual, era um sábado.
Exatamente naquele dia, minha filha completava 22 anos. Sábado, 16 de fevereiro de 2002, oito horas da manhã.

Talvez eu não pudesse precisar o momento se não fosse o aniversário, a mudança — mas foi como aconteceu. 

Minha mãe enlouqueceu num sábado de manhã.

Morávamos juntas, as três. Minha mãe com 79 anos,  eu com 49, minha filha com 22. Mamãe passara uma semana viajando, em uma dessas excursões de terceira  idade, em Caxambu.

Chegara na véspera. Tínhamos acordado bem cedo, minha filha e eu, para esperar o caminhão da mudança e estávamos na sala, conversando, quando mamãe apareceu.

Toda arrumada, a roupa impecável — sempre fora vaidosa —, a calça bege, a blusa estampada, o colar de marfim, tudo combinando. Os  cabelos bem penteados, um pouco de pó
de arroz nas faces, batom.

Sorriu ao nos ver. Notei que usava seu melhor par de óculos, um de aro irisado, parecendo madrepérola, trazendo incrustadas nos cantos superiores  duas pedrinhas de strass, como pontinhos de luz.

Jamais  usava aqueles óculos a não ser quando ia sair para algum  lugar importante.

— Aonde você vai, mamãe?

Ela me olhou, ainda sorrindo, mas trazendo na testa os vincos que denotavam um começo de impaciência.

— Vou descer para tomar café, claro.

O silêncio que se seguiu àquela frase foi imenso, de uma tal densidade que era como se o universo fosse outra vez a bolinha de golfe que, dizem, era sua dimensão antes  do big bang.

Não sei quantos segundos se passaram.

Sei  que eu e minha filha nos entreolhamos. E se esse momento de silêncio e perplexidade hoje me parece tão  tremendo é porque, enquanto durou, ainda tivemos o benefício da dúvida.

Mas precisávamos fazer outra vez a pergunta, a frase absurda pairava no ar. E eu fiz:

— Descer para tomar café?

— É. Descer para tomar café!

E então entendi  tudo. Quando estamos hospedados  num hotel, acordamos, mudamos de roupa e descemos para tomar café. 

Depois de uma semana em Caxambu, minha  mãe pensava
que ainda estava no hotel.

Naquele instante, com uma lucidez imensa, tive a dimensão do que estava acontecendo.

A atitude de minha mãe era a prova inequívoca de que algo se rompera em sua mente.

Fios microscópicos chicoteavam soltos no misterioso universo de seus neurônios.

Um salto fora dado.



Editora Objetiva.


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